A vivência como jornalista cultural foi uma das etapas que levaram o cearense Pedro Rocha a, mais adiante, tornar-se cineasta. Depois de seis anos de atividade na redação, ele passou a lidar com audiovisual, participando do Coletivo Nigéria, grupo voltado ao documentário, que frequentemente aborda temáticas referentes aos direitos humanos no Brasil. Em 2013, Pedro lançou na internet Com Vandalismo, longa-metragem co-dirigido em parceria com o Coletivo, focado nas manifestações que ocorreram em diversas cidades brasileiras. Um êxito de views. Dois anos depois, resolveu dedicar-se exclusivamente à produção cinematográfica. Corpo Delito (2017), financiado pelo programa Histórias que Ficam, da Fundação CSN, é a sua estreia no cinema. Pedro gentilmente nos atendeu para esta conversa sobre o seu processo de criação, bem como acerca das questões que o inquietam enquanto cineasta. Confira!
Que inquietações te levaram a fazer Corpo Delito?
Passei a infância numa praia aqui do Ceará. Muitos dos meus amigos eram filhos de pescadores. A diferença de classes entre nós sempre me incomodou. Depois, fui jornalista de cultura, interessado pelas manifestações artísticas da periferia, o rap, o hip hop. Mais tarde, ingressei no Coletivo Nigéria, onde fazíamos documentários institucionais, alguns de cunho mais militante. Portanto, já estava próximo dessa pauta do extermínio da juventude pobre negra, talvez um dos problemas mais drásticos e cruéis do nosso país. Em paralelo a isso, havia um desejo, de longa data, de escapar à linguagem jornalística, desse registro pretensamente preso ao real, que, em último sentido, acredita na captura do real, supostamente sem manipulações. Então, o filme partiu da soma de um incômodo com uma vontade de criar uma experiência mais livre e aberta do que a do jornalismo.
Sem alardes, você acaba fazendo um painel incisivo da exclusão social, tendo a situação prisional como ponto de partida. Era essa a sua ideia inicial?
Tinha uma intenção, talvez não muito clara. Gastei boa parte do meu discurso militante no Coletivo Nigéria. Sai de lá com a impressão de que, embora necessárias, as obras mais contundentes, de denúncia mais direta, não raro, geravam certa cartarse. O espectador sai do filme indignado, mas se achando bom, até melhor que os personagens. E isso me incomodava um pouco, pois não sei se tal abordagem gera um debate instigante, um questionamento mais profundo, se leva à mudança de atitude. Então, o Corpo Delito partiu de dúvidas, da disposição de enfrentar essa ambiguidade. Eu tinha muito medo, por esse filme ter um discurso não muito literal, de ele ser capturado pelas opiniões de direita, especialmente nesse momento acirrado no Brasil. Precisamos deixar os posicionamentos claros para evitar más interpretações.
Que tipo de debates você acha que seu filme pode suscitar, especialmente numa sociedade em que tanta gente acredita na máxima absurda do “bandido bom é bandido morto”?
Pode gerar algum tipo de deslocamento, sobretudo para essas pessoas que se acham muito donas da razão, que acreditam ser normal poder, por exemplo, ordenar a morte de outra pessoa. Acredito que o filme possa deslocar esse indivíduo de tal realidade única e aproximá-lo do outro, fazer com que ele tente entender um pouco de onde vêm as outras pessoas, como pensam, o que querem da vida. É preciso tentar compreender porque chegamos onde estamos. Está muito ruim agora e a tendência, a não ser que façamos algo, é só piorar.
Você apresenta a privação da liberdade em outros momentos, como quando Neto é cercado de olhares à “estranheza” de sua presença no shopping, ambiente classe média….
Isso diz respeito ao nosso racismo. Abolimos a escravidão, mas não lidamos com as consequências desse ato. Escorraçamos os negros e os pobres dos centros da cidade, jogando-os na periferia, restringindo-os a trabalhos subalternos. Existe uma estrutura de controle institucionalizada, de apartamento de grupos sociais. No começo do século XX, autuavam as pessoas por suposta vadiagem. Existem diversos estudos de criminalização dos negros nas cidades brasileiras, pois muitos foram, e ainda são, presos arbitrariamente. Não mudou muita coisa de lá para cá. Há toda uma logica do poder judiciário que move essa engrenagem, além de uma polícia militar formada para isso. O policial operacional é valorizado, aquele que faz o maior número de abordagens por dia, inclusive tendo metas. E isso tudo que gerencia essas expectativas sociais.
Como foi o processo de aproximação das pessoas, especialmente da família do Ivan? Há uma espontaneidade impressionante, como se a câmera ali não estivesse.
Na verdade, existiu certa dificuldade de trabalhar essa mise-en-scène, a quarta parede como um elemento nesse processo de identificação. Algumas cenas foram repetidas, mas nem tudo podia ser feito desse jeito. Então, muita coisa foi no calor da hora, mesmo. Mas o filme não é blindado, tem alguns olhares para a câmera, nele transparecem certos desconfortos. É um documentário sujo, irregular, que se deixa permear um pouco pelas condições em que foi feito. Gosto bastante disso. Mas, também, há talentos, especialmente os do Neto e do Ivan, que possuem presença de câmera, de atuação diante da câmera. Isso me impressionou.
Realizar Corpo Delito foi um grande processo de empatia?
Ao longo do filme, criei um elo com essas pessoas. Eu saía para curtir com elas, sem a câmera. Passamos Natal, Réveillon, e boa parte do Carnaval juntos. Existiu toda uma convivência por trás das filmagens, que não era necessariamente relativa a trabalho. Aos poucos, criamos proximidade, empatia, amizade, independentemente das diferenças, que permanecem. Sem diluir as diferenças, construímos uma relação sincera.
(Entrevista realizada por telefone na conexão São Paulo/Rio de Janeiro em dezembro de 2017)
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