Teatro, Literatura, e agora, também Cinema. Marcus Faustini estreia na tela grande com o drama social Vende-se Esta Moto, estrelado por João Pedro Zappa, Vinícius de Oliveira e Silvio Guindane. O longa, que trata dos dilemas de um jovem da periferia carioca prestes a se tornar pai pela primeira vez, reflete algumas das maiores preocupações do artista, que entre seus trabalhos mais aclamados estão a peça Guia Afetivo da Periferia (2009) e o documentário Chão de Estrelas (2002). Colunista do jornal O Globo e autor de livros como O Novo Carioca (2012), ele se define como “pensador e agitador cultural”. Essa movimentação, dessa vez refletida na tela grande, teve suas primeiras exibições no Festival do Rio de 2017, e entra em cartaz agora, quase um ano depois. Aproveitando o lançamento, fomos conversar com o diretor. Confira!
Por quê falar de um Rio de Janeiro que os turistas não conhecem nessa sua estreia no cinema?
Acontece que sou um cara da periferia do Rio de Janeiro, filho de uma família de nordestinos, que cresceu nas favelas cariocas. Sempre circulei muito pela cidade. E isso é algo curioso, pois falamos pouco dos pobres que circulam. A favela não é outro mundo, ela faz parte da cidade. Diariamente essas pessoas que moram nelas encontram suas próprias maneiras de viver a cidade. A periferia não é só bater tambor e tomar tiro, como se vivêssemos encerrados dentro daqueles limites. Isso pautou toda a minha existência! Aos poucos comecei a me envolver com o teatro, a escrever, a participar de projetos sociais, e essa experiência me possibilitou conhecer esta realidade. Puxa, tem Tchekov na periferia, tem tédio, tem dramas. Estamos acostumados a representar esse lugar como se fosse algo extraordinário, mas não é assim. É bem ordinária, eu diria! Não pude fazer escola de cinema, até porque não tinha condições, mas fiz peça de teatro, escrevi livros, até chegar aqui! Quem é de classe média baixa, assim como eu, tem que experimentar, estar sempre circulando, ir revelando esses afetos. O filme é uma tentativa de contribuir para ampliar esse imaginário do Rio de Janeiro, que não é só a Zona Sul, como a televisão vende. O Rio é um grande subúrbio!
Como surgiu a ideia de contar a história de Vende-se Esta Moto?
Esses personagens são pessoas e situações que a longo da vida eu vi e vivi. Sempre percebi essa gente que circula, em constante busca por novas experiências afetivas, num atravessar da cidade vinculado ao amor. Tem uma geração, agora, da periferia, que está mais aberta a assumir estes riscos, e quis retratar isso também. Tem uma coisa no filme que tentei experimentar. Afinal, vamos vender essa moto, e como é que a gente faz? Há um ocaso da Classe C. Existe essa tentativa de dar certo do ponto de vida afetivo, mas é preciso mostrar que a cidade é feita de pessoas que moram longe, e que também tentam desfrutar de todos os cenários, talvez até mais do que aquelas que moram mais perto, mas estão acomodadas, não se aventuram. Isso tudo são coisas que conheço de perto e por isso fiz esse mergulho. É importante para o Rio de Janeiro aumentar seu imaginário, investir na nossa subjetividade. Bom, esse é um filme de estreia, feito de forma muito independente, e o que tentei foi construir essa linha. A cidade é maior, é claro, mas esse foi apenas um primeiro passo.
Por que a escolha da região onde se situa a história de Vende-se Esta Moto? Afinal, este é um Rio de Janeiro que não se vê nos cartões postais…
Com certeza, e foi justamente isso que estava buscando! O Batan é uma comunidade que é conhecida por ter tido milícia, pela violência a qual está associada, mas é muito mais do que apenas isso. Já tive jovens alunos que moram lá, e também na Maré, na Lapa, por todos os lados. O que acontecei foi que aumentei minhas redes pela cidade conhecendo essas pessoas! Eu fui esse jovem pobre, punk, rebelde, que queria conquistar o mundo, mas também tinha as minhas carências. São pessoas que tentam descobrir o afeto de uma maneira ou de outra, e a periferia também tem esse jogo de ir investigando e revelando aos poucos o resto da cidade.
No elenco vocês colocou jovens veteranos, digamos assim, como Vinícius de Oliveira e Silvio Guindane, ao lado de gente que está começando, como o João Pedro Zappa. Como foi a seleção do elenco?
O João já tinha feito uma peça comigo, então já tínhamos uma relação. O Silvio, por sua vez, era um desejo que tinha há muito tempo de querer trabalhar com ele, tenho uma grande admiração por ele. O Vinicius também dirigi no teatro, quando fiz Eles Não Usam Black-Tie, há alguns anos. Esses garotos são ótimos atores que haviam estudado comigo na escola de teatro, outros foram meus alunos, tem gente que conhecia dessas minhas andanças pela periferia. O meu trabalho sempre foi pautado por essa ideia de encontro. A linguagem pode ser um lugar de descoberta, e queria colocar em contato pessoas que também vivessem esse tipo de relação. O Vinicius morou na Maré, por exemplo! Há uma parada afetiva em jogo. O João é um ator excepcional, com quem gosto muito de trabalhar junto. E precisava de alguém que desse uma subjetividade que imaginava no protagonista. O nosso diálogo foi um pouco assim, afinal ele é um ator de cinema, e eu precisava disso. Eu é que sou o novato aqui, então foi legal ter esses garotos mais experientes ao meu lado.
Falando nos atores, o Silvio Guindane tem uma participação quase especial, meio poética. O que ele representa no filme?
Ele é o Anjo da Morte. É quem vem para o amor continuar, pois para isso alguém tem que morrer. Queria esse Anjo da Morte como narrador, de uma forma que não fosse panfletária, mas que refletisse a minha relação com a cidade. Esse, ao menos, foi meu esforço! Tem um monte de gente bacana colaborando nesse filme! É um pessoal que acredita que é possível contar uma outra história sobre o Rio! Ali também tinha um movimento mais alternativo, afinal fui punk nos anos 1980! Tem uma coisa que o punk não é um cara bêbado, ele observa e narra, e foi isso que quis trazer com o Guindane. O estrangeiro também pode ver de uma maneira diferente daquela com a qual estamos acostumados. A intenção era traduzir no cinema tudo que vivi na cidade durante a minha vida. Acho importante mostrar na ficção que o Rio é um manifesto.
Vende-se Esta Moto fala de periferia, mas também de minorias, como o público LGBT. Qual a sua motivação de incluir essa temática no filme?
Eu vivo isso no meu dia a dia, passo por essas relações e estou sempre atrás de novas descobertas. Acho importante deixar as pessoas livres para irem atrás dos afetos que lhes interessam. Não podemos enquadrar as pessoas. O que está no filme é uma parada que vivi, e quem tem muito a ver com a narrativa que estava buscando para essa história.
O que o protagonista desta história representa?
O homem hétero tem que ficar perdido. A grande função é isso, ele tem que reaprender como lidar com a realidade. A gente tem que mostrar, desconstruir a ideia do macho. É preciso viver a plenitude de ser homem! Não acredito em regras prontas, mas em subjetividade. Sou um maluco que vem da periferia do Rio de Janeiro! Imagina o quanto de porrada já tomei? Eu adoro o Xéu, e essa história é para que ela possa entender o seu significado nesse novo contexto! É bonito acompanhar esse processo. Agora, qual é o aprendizado dele? Ele é um cara que não pergunta o que aconteceu, é do tipo que diz “vou lá, fazer a tatuagem”. O homem hétero é só ação, e o narrador é quem tem a mensagem. Tem uma história ali sendo contada. Veja bem, ele alugou outra moto, então vai continuar circulando. Na minha cabeça, o aprendizado não vem só de revolução, mas também da frustração. O filme tem que deixar o que falar! A relação que importa é a do Xeu com a Lidiane. Ele precisa aprender a respeitar, essa é a minha perspectiva. Ele tem que suspeitar, e tentar reaprender com ela. Talvez, num próximo filme, eu consiga. No fundo, é isso.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Rio de Janeiro)
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