A ligação da cineasta Margarida Cardoso com a África é estreita, íntima. Nascida em Tomar, Portugal, em 1963, viveu em Moçambique até 1974, já que o pai, militar da Força Aérea, foi convocado para uma missão no país quando ela tinha apenas três anos de idade. Mais tarde, de volta à terra natal, estudou Imagem e Comunicação Audiovisual na Escola António Arroio. Já como realizadora, chamou a atenção por seu trabalho pessoal entre a ficção e o documentário. Depois de alguns filmes e prêmios importantes, Margarida se firmou como uma das referências mais sólidas do cinema português. Hoje, além de cineasta, é professora da Universidade Lusófona de Lisboa. Seu mais novo filme, Yvone Kane (2017), coprodução Brasil/Portugal, toca nas feridas do colonialismo e do pós-colonialismo, por meio da perspectiva de duas mulheres semelhantemente desalentadas no território africano. Margarida gentilmente nos atendeu para esta conversa via Skype, na qual falou sobre seu processo criativo e a respeito do apagamento histórico das mulheres envolvidas com as revoluções. Confira.
No centro de seu filme, há duas mulheres em permanente estado de desalento. É por meio delas que você expõe a sua visão desse processo colonial e pós-colonial?
De certa maneira, é a apreciação que tenho de pessoas como elas, que não têm terra, nem identidade, que perderam essa noção de pertencimento no instante pós-colonial. Embora o filme não se passe num tempo determinado, dá para entender que certamente é depois de um processo de independência, num tempo pós-colonial ainda muito marcado por esse desalento. É importante o fato das duas estarem em decurso de perdas, a filha porque perdeu alguém, e isso não é muito claro, mas era minha intenção isso não ser claro, e a personagem da mãe, interpretada pela Irene Ravache, porque está numa situação com nada aparentemente a ganhar. No filme a incomunicabilidade é bastante importante. Gosto muito de uma frase de um escritor sul-africano que diz: “A esperança é primeira a morrer”. Esse desalento, oriundo de você ter lutado por uma coisa durante a vida inteira e no fim não encontrar algo, é o que para mim é a vida, é a visão que tenho sobre o resultado desses processos complicados.
Embora ficcional, chama a atenção a forma como você documenta a realidade africana. Como foi a aproximação dos habitantes locais e a integração com o elenco?
Minha relação com Moçambique é muito longa, até porque vivi lá durante bom tempo. No meu trabalho, a instância documental leva sempre um pouco à instigação, para que eu possa criar depois as ficções. Não faço isso de propósito, mas é uma coisa que realmente tem acontecido. Acabo visitando bastante esses lugares, conhecendo bem o território. Então, tudo parte da minha observação dos espaços e das pessoas. Aquela senhora que trabalha no cinema, por exemplo, é alguém que conheço. É o tipo de personagem sobre o qual eu li muito, essa gente que permanece como restos dessa luta por independência. Estão lá como alienígenas, aliás, todas as pessoas do filme são meio alienígenas, no sentido territorial. Portanto minha relação com esse espaço vem da experiência no local, do meu grande conhecimento dos arquivos, afinal de contas fiz vários filmes com os arquivos de Moçambique.
Você faz questão de frisar certo apagamento histórico da participação da mulher nas revoluções, mesmo que tenhamos a celebração de Sara como uma figura importante. Você chegou a pesquisar sobre esse assunto?
Isso diz respeito a uma constatação. Colonizadores e colonizados têm uma violência em comum, que é a contra as mulheres. Isso nunca desapareceu, é geralmente uma violência legitimada, ainda hoje, vide essas questões recorrentes de assédio sexual. Nunca foram dadas opções históricas às mulheres de participação efetiva, mais forte. Elas são sempre muito manipuladas pela História, por pessoas que estão no poder. Para mim foi importante colocar isso no filme. Conheci duas guerrilheiras, conheço mulheres militares até hoje, mas nenhuma delas chegou ao menos perto dos lugares de poder. É relevante que haja essa crítica no filme, não por uma questão de ativismo, mas porque é a pura realidade. E tem mais. Quando as mulheres são retratadas como heroínas, elas são sempre santas, não têm vida sexual, por exemplo.
Como foi o trabalho, especificamente, com Irene Ravache?
Sempre a considerei uma grande atriz. Foi conveniente ela ser fisicamente parecida com a Beatriz (Batarda, atriz que interpreta a filha). Duas coisas fantásticas. Sabia que Irene poderia aceitar o desafio de filmar na África, em condições adversas, sobretudo de conforto. Nossa relação cotidiana foi ótima. Trabalhar com um grande número de não atores é sempre um desafio aos profissionais, pois isso os obriga a ser generosos. Nesse aspecto a Irene foi fantástica. Sempre pedia desculpas após errar, inclusive aos colegas amadores. Ela demonstrou um respeito incrível, sendo bastante atenciosa e aberta. Irene ria dizendo que eu a deixava fazer nada (risos). Na verdade tentávamos encontrar o tom adequado. Acredito que ela tenha gostado do resultado, pelo menos do seu próprio personagem. Em Portugal houve uma resposta incrível, as pessoas me perguntavam quem era a Irene. Alguns acreditavam que ela era russa (risos). Outra coisa impressionante é a língua, pois ela precisava construir frases inteiras num português completamente diferente do seu, e isso, realmente, é muito difícil.
Como é para uma mulher fazer cinema em Portugal?
Como mulher, sinto as mesmas restrições e problemas que se pode ter em outra área. Todavia, há pouco tempo eu era a única que figurava no box office português, com mais de 50 mil espectadores. Felizmente já fui destronada. Tenho sido contemplada em editais e concorrências, mas fazer cinema em Portugal está muito difícil. Acabo fazendo poucos filmes, mas por opção, por conciliar o trabalho de cineasta com o de professora universitária, entre outras muitas outras coisas. Realizar um primeiro filme é praticamente impossível aqui, ou seja, não temos renovação. Só há um edital para primeiros trabalhos, portanto só há um primeiro filme por ano. O que fazer com toda essa gente que sai das escolas, das universidades e dos cursos de cinema? As pessoas acabam fazendo as coisas de outra maneira, buscando alternativas. Isso não é bom, mas, pensando bem, pelo lado criativo, dada as circunstâncias, também não é de todo mal (risos).
(Entrevista feita numa conexão Brasil-Portugal em novembro de 2017)
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