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Daniela Thomas em Berlim / Foto de Roni Nunes

Daniela Thomas, codiretora de alguns trabalhos de Walter Salles, como Linha de Passe (2008) e Terra Estrangeira (1995), mergulhou na história profunda da formação da identidade brasileira em Vazante, a primeira obra que assina sozinha. Não é uma história fácil para o público estrangeiro da Berlinale – especialmente com todo o cuidado em reproduzir formas antigas de falar (a história passa-se em 1821), quando os sotaques acentuam não só as características locais, como também as relações de hierarquia social – compondo muitos diálogos impossíveis de traduzir.

De qualquer forma, ninguém ficou indiferente à uma obra estilisticamente irrepreensível – algo que se pôde confirmar não só na sessão no Zoo Palast, mas nas conversas informais com a imprensa estrangeira. A beleza suntuosa de um filme rico em detalhes, com enormes cuidados de produção, uma fotografia em preto-e-branco (de Iris Brionti), um magnífico uso do som (a cargo do português Vasco Pimentel) e sets milimetricamente pensados (assinados por Valdy Lopes) para reproduzir todo o vazio da casa senhorial do protagonista.

Ele é Antônio (Adriano Carvalho), um rico proprietário em Diamantina, amargurado com a perda da mulher e do filho, que decide casar novamente com uma pré-adolescente (Luana Nastas). Nesta história de felicidade impossível, o filme fala da miscigenação forçada que originou o mulato e dos contratos sociais do Brasil do século XIX – com o domínio absoluto do homem branco sobre os escravos, que uma bela imagem no início do filme associa aos animais, e sobre a mulher – que não tem poder de escolha.

Em conversa exclusiva com o Papo de Cinema, Daniela Thomas revelou um pouco da construção do que, como ela definiu, assemelhou-se à uma “colcha de retalhos”. Conforme conta, a história do projeto já tem sete anos – período em que ia sendo escrito e, ao mesmo tempo, sendo inscrito nos diversos editais que financiaram o filme, como os da Petrobrás, de fundos setoriais, e uma parceria com a Península Ibérica através da Ibermedia espanhola e da portuguesa Ukbar.

 

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Cena de Vazante

A fundação cultural do Brasil: “não é uma história bonita”
No início do projeto havia o desejo de Thomas, que assina o roteiro com o produtor Beto Amaral, de ir atrás do mito fundador da identidade do brasileiro – que lhe parecia continuar pouco abordado na arte. “A minha hipótese foi a criança mista no filme, uma mistura que não foi feita no quarto do casal, foi construído nas bordas. A miscigenação do brasileiro vem de relações forçadas e estupros, não é uma história bonita“. A escolha do ano de 1821 se deu em função das possibilidades para a criação visual do filme pois, conforme salienta, “o Brasil ficou fechado aos artistas pela Coroa Portuguesa durante três séculos e só com a chegada da corte (1808), que trouxe Debret, que o Brasil passou a ter imagens. E eu não queria construir o filme sobre uma hipótese“.

 

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Os protagonistas Adriano Carvalho e Luana Nastas em Berlim

Um projeto de “bordadeiras”
O apuro visual e sonoro que envolve a produção é definido por Thomas como “um projeto de bordadeiras. Eu lembro da minha avó, fazendo colchas de crochê. Minha origem é a direção de arte, que fiz por 40 anos. O Vasco Pimentel, responsável pelo som, até nas folgas ia ao set para gravar, ele não parava. Na nossa equipe só havia ‘costureiras’, daí ser um trabalho delicado, obsessivo, detalhista“.

 

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Apresentação da equipe de Vazante em Berlim / Foto Roni Nunes

A universalidade da servidão
Se os pormenores dos diálogos não são fáceis de captar, Daniela Thomas acredita que a história da servidão é universal. “Ela é algo terrível, que não é apenas física, mas metafórica, continuamos tendo homens achando que têm poder sobre os outros. O dilema do personagem tem a ver com isso: será que diante do que lhe acontece ele vai destruir tudo e tornar o seu grande sonho impossível? O que manda, a cultura ou o desejo? Penso que isso sejam questões universais.” A felicidade parece algo impossível neste sistema, mas a roteirista acha que, no caso da menina Luana, ela apenas deixa de ser feliz quando “lhe impõe um lugar que não é para ela, que ela não quer, de fora para dentro. Antes temos ela na natureza, na chuva“.

 

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Equipe de Vazante em Berlim

Cinquenta Tons de Cinza e os escravos
Hoje o mundo experimenta a volta do populismo racista no qual, curiosamente, as fantasias genocidas vêm dos europeus. No Brasil as mortes com o comércio de escravos foram acidentais, não havia uma ideologia por trás. “Eu concordo com você, é quase como se o branco fosse um sádico. Eu não quis fazer um Cinquenta Tons de Cinza para mostrar a escravidão. Normalmente, por exemplo, em filmes como 12 Anos de Escravidão (2013), há um branco com um chicote e a pele do negro é maltratada. Eu também tenho uma ideia, muito cafona, de que a felicidade é oposta aos preconceitos, quando você consegue viver sem julgar os outros, sem se sentir superior.”

Vazante, comprado pela companhia francesa Boutique para distribuição internacional, não tem data de estreia comercial no Brasil.

(Entrevista feita ao vivo em Berlim, durante 67º Festival de Cinema de Berlim)

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