O Festival de Brasília sustentou ao longo dos anos a forte característica de ser um palco em que cinema e política dialogam intensamente. Especialmente por conta do momento de instabilidade pelo qual o Brasil passa, com severas crises econômica, ética e social, não é de se estranhar que a 50ª edição do mais longevo evento cinematográfico brasileiro tenha sido um espaço de debates fervorosos. Para além dos gritos de “Fora Temer”, entoados no Cine Brasília diariamente – e quem deu o pontapé nesse sentido foi o ator Matheus Nachtergaele, ao encerrar sua performance na noite de abertura – a sala de debates transformou-se num espaço para discutir questões urgentes, como representatividade e o lugar das vozes periféricas. Ou seja, num momento de severo recrudescimento das pautas progressistas na sociedade, da ascensão de figuras nefastas que alicerçam uma visão de mundo excludente e retrógrada, Brasília fez bonito por, novamente, tornar-se um ponto importante de resistência.
O primeiro grande indício dessa predisposição às bem-vindas problematizações, de naturezas tão diversas quanto admiráveis, foi o debate ocorrido no dia seguinte à exibição do aguardado Vazante (2017), da cineasta Daniela Thomas. Salvo as exaltações exageradas, que deram conta de colocar no filme praticamente uma pecha de racista – coisa que ele não é –, foi importante ver a disposição da plateia em confrontar a criadora, mostrando demandas da contemporaneidade. Pena que se tenha perdido um pouco a mão em meio a tanta coisa que surgiu na conversa, com algumas pessoas incorrendo na falta de respeito, inclusive chegando ao ponto de praticamente “queimar em praça pública” a mulher que admitiu ter criado um filme (belo, por sinal) a partir de seu lugar de branca classe média, sem com isso abafar a voz que vinha das senzalas. Na verdade, o longa de Thomas, ao abordar relações de poder que remontam à era pré-colonial, tangencia a questão escravocrata, a enfrentando, com certeza.
O debate mencionado, porém, continuou reverberando ao longo dos dias, sintoma de que as pautas nele levantadas estavam na ordem do dia. Alguns filmes que vieram a seguir acabaram decepcionando, como Música Para Quando as Luzes se Apagam (2017). Pendular (2017) teve uma recepção morna. A beleza do relacionamento em voga não foi suficiente para incendiar o Cine Brasília. Aliás, a ausência desse calor era cada vez mais sentida. Construindo Pontes (2017) discutiu questões importantes, mas num itinerário errático. Já Café Com Canela (2017) foi celebrado por alguns como lufada de originalidade e frescor. Na verdade, afora as questões mais especificamente pertinentes à representação do cotidiano do recôncavo baiano, o filme peca pela inconstância, embora possua charme. O Nó do Diabo (2017) sustentou a bandeira do cinema de gênero, mas sua desigualdade evitou a celebração em torno dele, que muitos aguardavam. Faltava “o filme”.
Por Trás da Linha de Escudos (2017) exalava controvérsia desde a sinopse. O percurso de acompanhamento do Batalhão de Choque do Recife revoltou algumas pessoas, colocando o cineasta Marcelo Pedroso na mira de manifestações ostensivas contra sua proposta de criar empatia por policiais que reprimem manifestações públicas. Todavia, ele não foi criticado tão virulentamente quanto Daniela Thomas, isso por um filme bem mais problemático. Será que é mais culpa do machismo ou da “broderagem”, inclusive de certa parcela da crítica, com o realizador? Fácil imaginar, difícil definir, talvez porque seja um somatório das duas possibilidades. Chegando próximo ao fim, foi a vez de Era Uma Vez Brasília (2017), o aguardado filme de Adirley Queirós. A expectativa era grande, proporcional à decepção, a maior do Festival. E foi somente na última noite que Brasília conheceu seu longa-metragem mais robusto, sensível e emblemático. Arábia (2017) conquistou a plateia e a maioria da crítica com, grosso modo, sua ode ao trabalhador e à literatura. Enfim, “o filme” havia chegado, com ares de favorito.
No que tange aos curtas-metragens, a seleção deste ano também foi particularmente bem-sucedida. Filmes de diversas regiões do país foram exibidos na tela do Cine Brasília, inclusive reforçando um dos temas principais desta edição, justamente as vozes da periferia. Interessante notar como a programação foi bem feita, já que quase diariamente curtas e longas dialogavam francamente. O grande acontecimento no formato curta foi a exibição de Mamata (2017), de Marcus Curvelo, uma sátira bem-humorada da convulsionada situação do país, vista pela ótica de um jovem desiludido e constantemente atravessado por signos da atual configuração de nossa sociedade tomada por poderes e intenções nebulosos. Outro ponto a ser ressaltado é a valorização dos curtas nos debates. Muitas vezes, dentro dessa dinâmica pós-sessão, os longas dominam a cena. Aqui, se falou bastante dos curtas, também.
PREMIAÇÃO
A noite de premiação da 50ª edição do Festival de Brasília foi longa, embora dinâmica. Diversas láureas paralelas deram conta de celebrar as produções local e universitária, no que se configura um dos grandes legados do evento, pois valoriza a região e mira o futuro. Falando especificamente da mostra competitiva, de curtas e longas-metragens, pode-se dizer que o resultado foi, no geral, bastante satisfatório. Tentei, de Laís Melo, eleito Melhor Curta pelo júri oficial – sua protagonista, Patricia Saravy, levou para casa o Candango de Melhor Atriz – não foi uma unanimidade, longe disso, mas cativou pela maneira sensível de abordar um tema tão delicado quanto a violência doméstica. Mamata, de Marcus Curvelo, ganhou o Prêmio Canal Brasil e o da crítica, oferecido pela ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Já o júri popular deu a vitória a Carneiro de Ouro, de Dácia Ibiapina, algo que pode ser imputado, em semelhante medida, ao fato do curta ser do Distrito Federal e ao carisma do protagonista.
Confira a lista completa dos vencedores
No que diz respeito aos longas-metragens, Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, fez a limpa, com justiça. Levou para casa o Candango de Melhor Filme, foi o eleito do júri da crítica e ganhou, ainda, os prêmios de Trilha Sonora, Montagem e Ator (Aristides de Souza). Realmente, o longa-metragem mineiro foi o destaque do evento. E, felizmente, isso foi contemplado na noite de premiação. A vitória de Adirley Queirós, como Melhor Direção, por Era Uma Vez Brasília (2017), se justifica mais por conta do cineasta estar “jogando em casa”, e, evidentemente, pela representatividade dele no cenário nacional, que especificamente por seus méritos nesta ficção-científica-documental-existencialista. O baiano Café Com Canela (2017) fez bonito, conquistando o júri popular e, ainda, os Candangos de Melhor Atriz (Valdinéia Soriano) e Melhor Roteiro (Ary Rosa). Apenas Pendular (2017) e Por Trás da Linha de Escudos (2017) saíram de mãos abanando, o primeiro, injustamente – ao menos, Raquel Karro (confira aqui a nossa entrevista com ela) poderia ter ganhando na categoria Melhor Atriz –, o outro com as bênçãos da justiça.
A 50ª edição do Festival de Brasília foi marcada por discussões, debates e filmes com contornos que nos apresentam demandas urgentes. Dez dias em que caminhos foram traçados, reivindicações surgiram na tela e nas conversas. Objeções feitas a certo oportunismo localizado, camuflado para tentar-se despercebido em meio a tantas causas importantes, a determinados discursos falsamente inclusivos que levantavam justamente a bandeira da exclusão em função da autopromoção, foi excepcional acompanhar, mais uma vez, um evento com essa envergadura cinematográfica e política. Que venha a edição 2018. E claro, o Papo de Cinema lá estará.
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