Crítica

O diretor dinamarquês Lars von Trier é tão bom cineasta quanto marqueteiro. A cada novo trabalho dele é possível perceber tanto uma impressionante criatividade como uma incontrolável vontade de polemizar e chamar a atenção. Objetivos plenamente atingidos em Anticristo, seu filme mais recente. Exibido pela primeira vez durante a mostra competitiva do Festival de Cannes 2009, saiu de lá com dois reconhecimentos: o de Melhor Atriz, para Charlotte Gainsbourg, e um ‘anti-prêmio’ do Júri Ecumênico, pela sua ‘visão misógina’ de uma relação amorosa. Ou seja, como é possível perceber, pontos para o melhor e para o pior da produção.

Concebido na estrutura de um romance clássico e dividido em quatro capítulos (LamentoDorDesespero Os Três Pedintes), mais um prólogo e um epílogo,  Anticristo mostra o poder de uma tragédia quando esta se abate com toda força sobre um casal. O início, esplendorosamente fotografado com um rigor estético poucas vezes visto (palmas para o fotógrafo Anthony Dod Mantle, oscarizado por Quem Quer Ser Um Milionário?, 2008), nos revela paralelo a toda esta beleza visual o princípio do desastre: enquanto fazem amor, o filho pequeno deles acidentalmente cai pela janela, vindo a falecer. A partir deste momento cada um irá reagir de uma força, alterando para sempre a relação estabelecida entre eles.

Anticristo é quase uma peça teatral, não indo aos extremos visitados pelo realizador no anterior Dogville (2003), mas também longe do virtualismo de um Dançando no Escuro (2000), por exemplo. Gainsbourg já havia marcado presença nos interessantes Sonhando Acordado (2006) e A Noiva Perfeita (2006), mas é aqui em que ela se defronta com seu maior desafio até o momento. E se sai muito bem, apesar dos exageros do roteiro. A entrega é tamanha que chega a assustar, nos levando inclusive até a repulsa e o desprezo, algo que somente um bom intérprete consegue fazer com tanta habilidade e cuidado. Willem Dafoe (que já havia trabalhado com o von Trier em Manderlay, 2005), por sua vez, é aquele operário padrão, que nunca decepciona, mas também não surpreende. Uma participação apropriada, se levarmos em conta que a loucura e o descontrole está nela, e não nele.

Mas o que captura nosso interesse, com igual curiosidade e desprezo, são as intenções de von Trier, um realizador que pode ser acusado de tudo, menos de acomodado. É impossível ficar indiferente a qualquer uma das suas obras. E o mesmo acontece mais uma vez com Anticristo, um filme que incomoda numa proporção muito maior do que agrada, e que por fim se revela muito menos relevante do que se anuncia a princípio. É uma experiência singular, mas está longe de ser um feito cinematográfico que se sustente por si só, deixando de lado todo o barulho provocado pelos mais apressados. Assusta, com certeza, mas o efeito não perdura.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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