Crítica

Um filme sobre a paixão pelo cinema. Em poucas palavras, talvez essa seja a melhor forma de definir o documentário O Mestre e o Divino, um competente trabalho assinado pelo mineiro, radicado em Pernambuco, Tiago Campos. O longa, no entanto, teve suas filmagens no interior do Mato Grosso, mais precisamente na região da missão de Sangradouro, local onde o diretor encontrou uma figura tão inusitada quanto curiosa: Adalbert Heide, um excêntrico missionário alemão que entrou em contato com os índios xavantes pela primeira vez em 1957, e desde então tem registrado em vídeos e filmes suas andanças por lá. Quem colocou Tiago em contato com este personagem singular foi Divino Tserewahú, um dos seus alunos no projeto Vídeo nas Aldeias, produtora e escola de cinema para povos indígenas. Será na relação entre estes dois tipos que o filme irá se construir.

Tiago Campos é inteligente ao compor seu filme, registrando os dois lados de uma silenciosa batalha de culturas e origens, porém sem nunca tomar posição ou direcionar seu espectador para uma conclusão apressada. Heide, também conhecido como Mestre – seja pela idade, história ou mesmo ascendência – é bastante apegado aos modos mais tradicionais de produção cinematográfica, adepto de um cinema mais limpo (como o próprio afirma) e artificial. Ele quer mostrar o belo, não apenas o real. Já Divino pertence a uma nova geração conectada, e a despeito de ser um índio e respeitar suas tradições e costumes, não ignora o mundo contemporâneo e as exigências sociais e tecnológicas para fazer parte deste universo a ser desbravado.

Divino, no entanto, respeita o Mestre e tudo o que ele já fez por essa comunidade em termos de resgate histórico e de preservação da memória. Este, por sua vez, percebe – ainda que lentamente – que possui o que aprender com o jovem índio. Ambos, apesar dos divertidos conflitos que estabelecem, possui uma relação de co-dependência, e o filme consegue explorar isso com cuidado: os embates são mostrados com equilíbrio, sem deboche ou desprezo, mas como uma consequência natural do andar dos tempos. Heide, que chegou ao Brasil como parte de um movimento catequizador salesiano, ainda hoje preserva essa visão de “salvamento” pela religião, e seus filmes são um reflexo disso. Ainda que nada de sua produção tenha sido vista até hoje, Divino entende o processo, sem no entanto se submeter a ele: sua proposta é outra, e o registro que procura é aquele que deverá fazer diferença para ele e para seu povo.

O Mestre e o Divino, no entanto, possui um forte lado melancólico, investigando vidas dedicadas ao cinema que, no entanto, nunca chegam a cumprir seu objetivo final: alcançar um público. Tudo o que fazem, seja o alemão atípico ou o indígena curioso, pertencem à uma periferia artística que almeja um espaço para exposição, ainda que esse seja cada vez mais difícil. Os dois são figuras incríveis – melhores, inclusive, do que o filme em si – e carregam a obra nos ombros. Tiago Campos – que foi assistente  de Vincent Carelli no premiado Corumbiara (2009), vencedor de 5 kikitos – inclusive o de Melhor Filme – no 37º Festival de Gramado – é sábio em apenas abrir caminho para os seus retratados, que dominam a cena. A reflexão, no entanto, fica a cargo do espectador que melhor souber dosar os elementos expostos na tela.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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