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Crítica


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Sinopse

Espanhola de nascimento, Carlota vem parar no Brasil, então colônia de Portugal, uma terra bem diferente da Europa à qual está acostumada, pois calorenta e repleta de sensualidade.

Crítica

A primeira surpresa diante do filme se encontra no ponto de vista. Ainda que se trate de uma comédia, o conteúdo histórico nos prepararia para uma apresentação naturalista. No entanto, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995) embala os fatos em tom de fábula enlouquecida e fantástica. A trama real é marcada por personagens brasileiros, portugueses e espanhóis, porém o controle da narração ocorre por meio de um homem britânico. Ao invés de conversar com o espectador ou escrever cartas a um interlocutor distante (recursos típicos das biografias históricas), ele compartilha as passagens da colonização com uma criança travessa, em inglês. “De todos os problemas do Brasil, borboletas gigantes são o pior”, confessa o interlocutor, antes de admitir que estava brincando. A História se desveste de seu aspecto documental para adquirir um teor lúdico: as princesas, reis e rainhas que realmente existiram se convertem nos reis, rainhas e princesas característicos do imaginário infantil. O projeto adota este ponto de partida curioso, associando o conhecimento de séculos atrás ao universo infantil onde tudo é possível. A habitual frieza da percepção de fatos no passado se encontra com o devir da fantasia.

O real, neste caso, é colocado entre parênteses. A diretora Carla Camurati partiu de extensa pesquisa em materiais de arquivo para, junto da co-roteirista Melanie Dimantas, decidir do que poderia abrir mão para a representação em imagens. Em outras palavras, as concessões poéticas não ocorrem por desconhecimento histórico, e sim por opção narrativa. Caso as criadoras revestissem o filme de ares de veracidade, seriam repreendidas pela abordagem tragicômica, porém o projeto se assume desde o primeiro minuto enquanto farsa. Trata-se de uma narrativa oral transmitida através das gerações, em um país distante, portanto sujeita às flutuações da interpretação e da memória. Seria ao mesmo tempo tentador e inútil buscar conhecimento sobre a História do Brasil por meio deste projeto. Por um lado, as passagens importantes estão presentes: o casamento indesejado de Carlota Joaquina com Dom João VI, a mudança da corte portuguesa para o Brasil, o abandono do governo na Europa, o posterior retorno de Dom João VI a Portugal, deixando o filho Dom Pedro I gerenciando a colônia, para então facilitar o caminho rumo à independência. Por outro lado, as imagens estão carregadas de exageros circenses, gestos teatrais, cenários coloridos demais, encontros que nunca teriam existido.

A percepção da malandragem e do “jeitinho brasileiro” contamina não apenas a construção dos personagens, mas o desenvolvimento do filme como um todo. O roteiro se move anarquicamente ao longo dos anos e dos cenários, abandonando personagens importantes (como a própria Carlota) para resgatá-los mais tarde, fazendo longos desvios e retardando em mais de 40 minutos a chegada ao Brasil. Entre trovões animados, música de aventura e devaneios onde Carlota joga o marido no fundo do poço, o absurdo jamais abandona a narrativa. Talvez este seja um dos elementos mais divertidos do filme: perceber que a História não se move de maneira linear e inequívoca, com uma versão única. Ela está repleta de causos mal contados, anedotas esquecidas, reinvenções pelo ponto de vista dos vencedores ou interpretações partidárias. A colonização brasileira, e sua posterior colonização, foi repleta de elementos aberrantes em termos históricos – fomos a única colônia mundial a se tornar sede, por exemplo. Ao invés de acatar os acontecimentos por meio da normalização (“Isso aconteceu no passado, portanto, era normal que as coisas funcionassem assim”), o filme percebe que o ideal de nação partiu de erros, improbabilidades e abusos de todos os tipos, nos quais se inclui a escravidão.

A desconstrução do imaginário de luxo europeu funciona enquanto posicionamento político. Hoje, a síndrome de vira-latas ainda leva parte da elite nacional a aspirar ao modo de vida dos países da Europa. No entanto, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil se esforça em retratar a notável feiúra da protagonista, o fato que Dom João VI nunca tomava banho, os dentes podres da corte, os restos de comida que se acumulavam sobre a mesa, os arrotos, flatulências e diarreias desta gente suja, mal-educada e riquíssima. Durante a viagem ao Brasil, enjoam, vomitam e manifestam escorbuto. Para os atores, parece ser muito mais prazeroso construir personagens desvestidos da pompa habitual: Marieta Severo tem os dentes escurecidos pela maquiagem e o corpo espremido em roupas desconfortáveis, favorecendo os gestos irrequietos. Ela ostenta um sotaque falsamente espanhol, perto do português exagerado de Marco Nanini, numa mistura de palhaço triste e estadista frustrado. Enquanto hoje se exige que os governantes sejam técnicos de suas áreas, o retorno à monarquia nos lembra que os cargos hereditários alçavam ao poder pessoas incapazes e despreparadas, efetuando escolhas contraprodutivas ao povo. Qualquer semelhança com o Brasil de 2020 não será mera coincidência: cada século tem os bufões que merece.

É surpreendente que este projeto tenha sido o marco da retomada da produção cinematográfica brasileira após a interrupção quase total das atividades durante o governo Collor. Enquanto o país ainda se recuperava de gestão fracassada, Camurati decidiu resgatar uma história de mais de 200 anos atrás, focada na arrogância das elites e na exploração do povo enquanto projeto. O deboche crítico, aliado ao evidente cuidado de produção – vide a direção de fotografia brincalhona e criativa de Breno Silveira – torna a obra uma exceção entre exceções: a diretora conseguiu financiamento para um filme oneroso, sobre um tema a princípio hermético para o público médio, no momento em que o mercado sequer sabia como distribuir um filme nacional. Ela conseguiu reunir alguns dos atores mais talentosos do cinema nacional (aos quais se acrescenta Vera Holtz, Ney Latorraca, Beth Goulart, Norton Nascimento, Marcos Palmeira) e depois distribuir de cinema em cinema a comédia que se tornou um fenômeno de bilheteria. Correndo pelas bordas, o cinema da retomada se reinventou enquanto autoparódia, apresentando a arte malandra de um país malandro, a história patética da História real. O cinema brasileiro se relançou ao propor um novo olhar às imagens do passado.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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