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Sinopse

Ivan, um presidiário, ganhou o direito de sair da cadeia, mas segue preso a uma tornozeleira eletrônica. Como seus vizinhos e até mesmo sua família o vê?

Crítica

Ivan, protagonista de Corpo Delito, vive na periferia de Fortaleza com a esposa, Gleiciane, e a filha. O filme de Pedro Rocha se propõe justamente a acompanhar o cotidiano dessa família, dando ainda destaque a algumas outras figuras que rodeiam o protagonista, sobretudo seu amigo Neto. O que torna a realidade desse homem particular, no entanto, é que ele cumpriu oito anos de prisão e agora está no regime semiaberto, tendo de permanecer quase todo o dia em casa, já que não conseguiu se adaptar ao trabalho num projeto social de recuperação de detentos, utilizando uma tornozeleira eletrônica.

Ivan é daqueles personagens que provocam mixed feelings no espectador. Sujeito inquieto, sedento por vida, ele não consegue moldar seu comportamento às exigências do regime prisional em que se encontra, mesmo sabendo dos riscos de, ao fazer isso, voltar para a cadeia. Ao sermos apresentados a pessoas que amam Ivan e o querem por perto, inevitavelmente sentimos certa raiva de suas atitudes, dadas as possíveis consequências delas também para essas pessoas. Mas, justamente por conta da presença discreta, mas marcante, da câmera de Rocha, que, escrutinando cada momento do dia do protagonista nos leva a conhecê-lo um pouco mais como ser humano, compreendemos sua ansiedade por uma liberdade efetiva, sem a vigilância onipresente e o repetitivo bipe do aparelho em seu calcanhar.

Essa discussão sobre liberdade vigiada atravessa Corpo Delito para além do protagonista. Num determinado momento do filme, Rocha acompanha uma ida de Neto a um shopping center, programa vedado a Ivan. No entanto, a liberdade do amigo tampouco é plena, já que, enquanto jovem negro da periferia, transita como um corpo estranho naquele espaço, atraindo olhares atentos dos seguranças das lojas. Até que ponto esse personagem é mais livre que Ivan? No fim das contas, a procedência periférica acrescida da cor da pele não tornariam esses homens necessariamente condenados a eternas desconfiança e vigilância por parte da parcela branca e endinheirada da sociedade? Rocha parece movido por esses questionamentos e o filme os responde sem precisar gritar qualquer mensagem que busca transmitir.

O que resta, ao final, é um retrato doloroso de uma sociedade brutalizada, feito a partir de um olhar micro. Talvez a cena de Corpo Delito que melhor sintetize a separação aparentemente irreconciliável entre os “de cima” e os “de baixo” seja aquela, ainda no início do filme, que traz um diálogo entre Ivan e o juiz responsável por seu caso. Juiz que, como um senhor de engenho paternalista, que infantiliza seus subordinados para exercer domínio sobre eles, dispensa a Ivan tratamento semelhante ao oferecido a uma criança levada, desobediente, ao mesmo tempo em que humilha o detento se referindo a sua própria casa (provavelmente em algum condomínio de classe alta de Fortaleza) como inferior às instalações do projeto de ressocialização ao qual o protagonista não se adaptou. Há nessa fala uma carga de ironia brutal, disfarçada de esforço de aproximação, que revela justamente o extremo oposto desse suposto esforço: absoluta falta de empatia pela situação do outro e respeito por sua condição humana.

Daí incomodar tanto. Inevitavelmente restrito a exibições em festivais para plateias majoritariamente de classe média, dado o funcionamento do circuito cinematográfico brasileiro, o filme exige dessas plateias a aproximação de personagens não só marginalizados, mas também geralmente tratados, sobretudo no noticiário policial, como monstros dotados de uma alteridade incompreensível e que precisam ser exterminados, ou ao menos escondidos, dos olhos dos “homens de bem”. Mostrá-los, escancará-los sem grandes discursos pedagógicos, apostando sempre no pequeno e absolutamente identificável cotidiano, é o maior mérito de Corpo Delito.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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