Crítica
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Sinopse
Meticulosamente, as mãos de um homem montam uma casa modelo na qual coloca um tesouro salvo como em um santuário: uma foto de família. Assim começa uma jornada para a dor. Cada tragédia é única, mas na repetição das imagens há aquele barulho sombrio do qual não há escapatória.
Crítica
No começo, podemos nos considerar diante de um primo próximo de Sem Sol (1983), obra-prima de Chris Marker. Assim como no filme de 37 anos atrás, o cineasta Rithy Pahn utiliza uma narração em off onipresente, comentando o mundo com uma mistura de digressão, análise sociológica e poesia. Além disso, ambos os filmes recorrem a colagens de imagens aparentemente dispersas, que não fornecem um encaminhamento narrativo em si – elas dependem da fala para costurá-las, além das aproximações da montagem, é claro. Principalmente, ambos os filmes compreendem o documentário não como possibilidade de explicar ou convencer, mas como proposta de reflexão imagética. Panh, em paralelo com Chris Marker, parte do pressuposto que seu público já conhece os fatos principais ligados à Segunda Guerra Mundial e às bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. Portanto, é possível partir para o próximo passo: a discussão sobre o que nos leva a praticar atos tão bárbaros.
O discurso possui profunda ambição intelectual, reunindo conceitos sociológicos, antropológicos e filosóficos dispersos em narrações etéreas de André Wilms e Rebecca Marder. As vozes jamais se confundem com aulas (não são citados nomes de teóricos, nem correntes de pensamento), no entanto, carregam a pretensão de debate digna de um círculo acadêmico. Reflete-se sobre a evolução da guerra, sobre a invenção das bombas enquanto forma de não apenas matar um número maior de pessoas, mas de fazê-lo do alto, sem encostar nelas, nem ver os seus rostos. “A morte é eficaz, a morte é invisível do céu”, apontam os narradores, entre dezenas de outras falas semelhantes, em tom hipnótico. “Olhe. De novo. Cem vezes”, repete-se, enquanto o formato da tela, bastante retangular, divide a imagem em três partes, ora para reproduzir uma mesma cena em três quadros distintos, ora para fazer com que se imagens distintas, lado a lado, se comuniquem por associação. O diretor utiliza um procedimento típico da videoarte para fomentar um estilo marcado pela saturação, pela imagem repetida das bombas e das violações humanas.
No entanto, esse dispositivo da reincidência possui suas limitações. Irradiated (2020) está repleto de imagens de pessoas em estado de inanição, cadáveres humanos sendo arrastados por empilhadeiras, esqueletos desenterrados, cabeças decepadas, crianças desnutridas, bebês mutilados, corpos sangrando e fraturados, cidades destruídas, bombas explodindo, metralhadoras atirando e balas voando pelos ares. Há tantas imagens perturbadoras, do início ao fim, que o evidente incômodo provocado por elas pode se atenuar rumo à conclusão – afinal, quando tudo é horror, nada o é. No festival de Berlim, um dia mais cedo, Tsai Ming-Liang havia provocado um choque com Days (2020) ao criar uma cena belíssima através de uma minúscula caixinha de música. O momento produzia impacto por surgir depois de tantas imagens desprovidas de espetáculo, ou seja, ele se destacava por contraste. No documentário francês, ao contrário, tudo é horror. Esse ritmo corre o risco de provocar certa anestesia no espectador, algo contraproducente para a obra que busca a conscientização contra qualquer forma de guerra, em nome de qualquer ideia.
Em paralelo, o discurso científico e intelectual mistura-se perigosamente com o linguajar retórico e pomposo. Frases como “O mal irradia, mas a inocência vai além”, “Esse é o mundo, ou apenas o homem em chamas?” e a busca por uma “imagem tão pura e perfeita que possa transformar o mundo” citam conceitos de aparência profunda, porém caminhando sobre a linha tênue entre poesia e autoajuda. Para cada ideia interessante sobre o nosso papel humano e social durante as guerras, existe algum apontamento de ordem moral dividindo atos entre o bem e o mal. Um inesperado otimismo surge no final, quando a trilha sonora até então comedida torna-se sentimental, e Panh sugere que podemos nos tornar pessoas melhores, através das imagens clássicas de flores desabrochando e bebês nascendo. É muito curiosa a maneira como o conhecimento acadêmico se mistura com o senso comum mais básico, ou ainda como o convite ao debate de ideias se choca com o apelo a sensações e sentimentos.
Irradiated toma a precaução de não limitar suas imagens ao material de arquivo catastrófico das guerras. Há espaço para representações metafóricas dos conflitos, a exemplo do teatro japonês com personagens arrancando simbolicamente suas peles para expor a carne viva. Nem durante a poesia o discurso alivia o tom. Panh articula imagens sobre Hitler e ditaduras pelo mundo – com atenção especial àquela do Camboja, sua terra natal – para concluir, afinal, que a guerra é ruim, inaceitável, desumana. Talvez um arsenal cinematográfico tão diverso e potente, tão intelectual e chocante ao mesmo tempo, destine-se à constatação do óbvio. O diretor evita estabelecer paralelos diretos com ameaças contemporâneas, ou com as guerras efetivas dos nossos tempos (Iraque, Síria, etc.). Ele prefere que seu apelo pacifista dialogue com qualquer época e nação, apelando ao resgate do humanismo em seus espectadores. Existe uma intenção tão ambiciosa quanto ingênua neste filme, cuja narração diz que “Não se deve filmar em paz”. Panh filma com raiva, dor e tristeza, convocando ao espectador ao sentir o mesmo.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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