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Crítica


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Sinopse

Joana D’Arc é uma ex-professora da rede pública de ensino do Rio de Janeiro. Ela perde sua casa para a prefeitura e tenta recuperá-la. Sua trajetória é compartilhada pelo pirata Pharaó, da Baía de Guanabara.

Crítica

A princípio, é difícil se ater a qualquer elemento de Sofá para além de sua estética. O formato da tela se aproxima do quadrado com as bordas arredondadas, manchas luminosas e abstratas dominam as imagens durante os primeiros minutos, as cenas se alternam entre coloridos profundos: um momento é amarelo, outro é rosa, o outro é azul etc. Em determinadas cenas, os personagens conversam de ponta-cabeça. A ostensiva interferência digital no material bruto deixa a impressão de um filme que nasce de fato na pós-produção. O diretor Bruno Safadi, o montador Ricardo Pretti e o colorista se divertem com as possibilidades de “sujar” ou “enfeitar” a imagem. O cineasta trabalha sua captação em processo análogo ao do escultor diante da argila: o material filmado constitui um meio, não um fim, fornecendo uma infinidade de possibilidades pós-captação. A estética chama tanta atenção a si própria que poderia ser considerada a personagem principal do filme, ao invés de Joana d’Arc (Ingrid Guimarães), Pharaó (Chay Suede) ou mesmo o onipresente sofá.

À medida que os olhos se acostumam com a pirotecnia, começa a se desenhar uma pequena fábula sobre uma professora da rede municipal do Rio de Janeiro, despejada de sua casa em virtude das obras da Cidade Olímpica. Por mais estranho que seja ver atores famosos representando moradores de comunidades ou pessoas em situação de rua, a proposta funciona dentro da paródia proposta pelo diretor. Além das cores, o ritmo e as improbabilidades narrativas reforçam que não estamos num registro realista. A evidente conexão com a política do Rio de Janeiro, com recortes de jornal e menções explícitas a Eduardo Paes garante que a diversão das imagens não soe como uma brincadeira inconsequente. Pelo contrário, este estilo serve a refletir o absurdo da situação dos despejos. O sofá, então, torna-se símbolo da casa demolida, destruída pelo governo. Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Mas tinha um sofá. Compreende-se que Joana se apegue tanto ao objeto, espécie de relíquia do espaço desaparecido.

Conforme a realidade tão concreta se une à fantasia tresloucada de traficantes, piratas e filhas do prefeito, as escolhas de direção se afinam. Percebe-se que o preto de branco do tiroteio remete ao cinema antigo, granulado, de gênero. Duas cores diferentes marcam uma conversa em campo e contracampo. Uma carta escrita no início, substituindo os tradicionais letreiros na tela, constitui a única imagem não colorida artificialmente – como se toda a aventura multicor determinasse o tom do flashback. A aparência de aleatoriedade desaparece em detrimento de uma construção bastante coesa: embora aplique tantos recursos à imagem, Safadi mantém as mesmas ferramentas até o fim de sua curta fábula. A ridicularização do prefeito engomado, de luvas brancas nas mãos, constitui um posicionamento político sobre a assepsia do poder, enquanto o desleixo do policial (Bruce Gomlevsky) retrata a informalidade do setor tomado pela corrupção. Ao mesmo tempo, os jovens ladrões são tratados com carinho pela trama. Em meio ao aspecto lúdico, Sofá jamais perde de vista sua coerência política e humanista.

Quanto ao sofá, objeto sempre vermelho apesar de todas as colorações ao redor, ele constitui uma forma simbólica de se apropriar do espaço urbano. As andanças de Joana d’Arc e Pharaó (duas figuras míticas) pelo centro do Rio de Janeiro representam não apenas uma maneira de o cinema se apropriar dos locais de convivência como uma experiência à beira da performance, através da imagem do móvel depositado diante da Candelária, ou entre avenidas. Safadi brinca ao mesmo tempo com sua versão do Cinema Marginal (uma citação contemporânea à Margem de Candeias, por exemplo) e com o cinema pop de colagens e intervenções. Enquanto narrativa, Sofá resulta bastante simples, reforçando a artificialidade de seus personagens-tipos. Ingrid Guimarães e Chay Suede compõem tipos absurdos – ele, com o queixo projetado e a fala marrenta; ela, com suas meias infantis e uma amiga imaginária -, mas nunca ridicularizados. Existe evidente cuidado dos criadores em separar a paródia grotesca dos políticos (que parecem extraídos de um programa humorístico da TV) com a paródia dos marginais, dotados de sonhos e afeto.

“Larga as armas e volta pra escola!”, pede a professora ao aluno, convertido em ladrão no centro da cidade. O pedido é tratado com escárnio pelo interlocutor, mas a narrativa se encerra com um empoderamento simbólico através da alfabetização, quando as brincadeiras enfim se interrompem, a luz volta à naturalidade e a atuação beira o realismo. A sociedade desigual perde a sintonia das cores e se vira de ponta-cabeça, mas a possibilidade do martírio e do aprendizado formal recoloca as peças em ordem. Joana d’Arc tem o final que lhe cabe após a guerra – com este nome, não poderia encontrar um desfecho diferente. Safadi continua investindo num cinema particular, brincando com fábulas diminutas, apropriando-se da herança experimental e social de cinco décadas atrás para oferecer uma linguagem inconfundivelmente contemporânea. O estilo jovial se difere da elegância esperada dos grandes filmes de festivais, ao passo que destoa das convenções do cinema comercial. Neste caso, os nomes populares de Ingrid Guimarães e Chay Suede surpreendem dentro uma proposta muito distante das personas públicas de ambos. Safadi constrói mais um quebra-cabeça, uma nova maneira de fugir às expectativas de qualquer corrente estética dominante.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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