float(5) float(1) float(5)

Crítica


10

Leitores


1 voto 10

Onde Assistir

Sinopse

A portuguesa Aurora é uma senhora de opiniões controversas que convive com uma empregada cabo-verdiana. Após sua morte, fatos obscuros do passado se revelam, remetendo diretamente à África.

Crítica

Deus já foi mulher. É assim que Mia Couto inicia A Confissão da Leoa, seu último romance. No livro do moçambicano, um caçador de leões é chamado para encontrar e matar os felinos que têm comido mulheres de uma aldeia. Chegando lá, logo descobre as dificuldades do trabalho, reconhece as relações míticas dos populares com os deuses, presencia as tensões políticas que dizem respeito inclusive à sua presença na região, narra violenta e poeticamente a confusão dos corpos humanos com os predadores esfomeados na companhia de um escritor que tudo anota. O caçador percebe que seu habitual tiro, outrora certeiro, não vai encontrar a carne dos leões sem antes entender como eles agem espiritualmente com o povo. A conexão do espírito, muito além de uma lógica religiosa centrada numa figura única e toda potente, é apropriada em um clima de sonhos e desejos, atos do impulso, fissuras da alma que rasga e que sangra. Há variantes em jogo, personagens que resistem e querem viver em paz. Descobrimos, no final, que a leoa é também uma mulher: é gente, humana.

Em Tabu, mais recente filme de Miguel Gomes, há também uma dança, o rufar dos tambores sintetizam a morte do caçador que se despediu da vida: foi morrer junto do crocodilo. Narrado pelo próprio diretor, começa com o preâmbulo do caçador indo até o rio para dançar com a morte, desarmado, enquanto a morte está sempre armada. Após seu fim, que não vemos, pois Miguel nos dá a ouvir apenas o barulho de um objeto que se lança às águas enquanto a música dá tom a sua morte, outra história terá início. Já no final desta sequência, há um plano do crocodilo “triste e melancólico”, quando a luz já é pouca, seguido da figura de uma mulher “que um misterioso pacto uniu e que a morte não pode quebrar”. A mulher e o crocodilo, juntos na eternidade, quem sabe num só corpo, conduzem as histórias do filme. Como no livro citado, o caçador foi morar no corpo do outro animal.

Um passado colonial tão assustador e presente que não sai da geografia dos ambientes contamina as imagens de Tabu, assim como compõe o imaginário estético da escrita de Mia Couto. A relação entre o livro e o filme reside apenas no símbolo de uma aventura, de um pacto de criação, fome de aventurar e de pensar a própria consequência dos espaços artísticos – cinema e literatura, sonhos e deuses, memórias de um presente infinito. Em ambos, não há espaço para visões de uma África exótica senão como atitude de revelação de um insulto (no caso de Tabu, o europeu africanizado), a potência africana é outra, responsável e rica, vítima de seu ouro e não de sua ingenuidade. A aventura é essa alegria de filmar e de pensar o cinema de forma radical, que é precisamente o contrário de homenageá-lo. Sobra em Tabu a beleza de um ritual quase xamânico, que é o cinema mesmo, a feitura do filme – coisa que Aquele Querido Mês de Agosto (2008), seu trabalho anterior, capta tão bem. A viajante do Vento do Leste (1970), de Godard, escolhe o caminho da aventura após perguntar a um Glauber Rocha cantante qual o caminho do cinema político. É por aí que vai o cinema de Miguel Gomes.

Não é por acaso que a primeira parte do filme, intitulada o Paraíso Perdido, começa em um 28 de dezembro, dia fatídico para toda uma simbologia do cinema, pois se trata de seu “nascimento” lá com os Lumière (para quem o cinema não teria futuro algum), numa sala cujo nome não poderia ser mais significativo: Eden – o paraíso bíblico, início de tudo, selva dos maiores pecados; caixa de pandora de toda nossa dor. Lá onde o cinema “passa a existir”, também tem início a história de Tabu, com Pilar, uma das personagens, sentada numa sala de cinema vazia. Mas ao contrário da sala lotada de espectadores que dormem (ou que estão mortos?) na abertura de Holy Motors (2012), Pilar parece saber bem o que está vendo. E ela irá outras vezes ao cinema, acompanhada de um amigo pintor, homem de alma generosa. Ela é vizinha de Aurora, mulher de idade avançada, que mora aos cuidados de uma empregada africana. Ao longo dos dias, após algumas rodadas de chá, Aurora acaba no hospital. Para que o cinema possa narrar outra história, de outro tempo, de outro passado, Aurora precisa morrer.

A segunda parte do filme, Paraíso já localizado, vai contar a história da jovem Aurora no monte Tabu, em uma África de muitas décadas antes. Após a morte de Aurora, que deixou num bilhete apenas um nome, Pilar, mulher de reza, de fé católica, encontra Gian-Luca Ventura, homem que narrará todo o filme que resta, sua história com Aurora, o amor e sobretudo a “a-ventura”. Numa África ainda colonizada por Portugal, diferente daquela de Mia Couto (onde o problema é a autodeterminação do povo), ela é também boa no gatilho, assim como o caçador do prólogo. Namora outro, mas mantém um caso com Ventura; secreto, vibrante, perigoso. Nesta segunda parte, o filme gira em torno dessa relação.

Esse panorama narrativo é útil para que possamos tentar entender um pouco as coisas. Ver como elas conversam e interagem com os tempos e os personagens, criando um drama de movimentos delicados que se amarram com paciência, com o sabor do fluxo do rio onde se esconde o crocodilo. O cinema silencioso que aparece aqui e ali, as músicas que não podem faltar (e nunca faltaram em seus filmes anteriores) e o preto e branco da fotografia. Se em A Cara que Mereces (2004) o mundo é um sonho (sonho de cinema, exatamente cinematográfico, porque cinema é sonho, ilusão, mentira, verdade) e em Aquele Querido Mês de Agosto o sonho é o mundo, em Tabu o cinema é um mundo a sonhar, na poesia da narração que jamais atropela a forma intrínseca das imagens, que não conta mais do que mostra, que narra como um xamã se comunica com os espíritos. Através dessas imagens que constroem desde já um repertório estético e narrativo muito amplo, Miguel Gomes vai firmando território e se instalando como um dos mais interessantes cineastas contemporâneos. Sua maior força não está no inovar, mas na produção de um conhecimento novo a partir de uma coleção de imagens e de olhares sensíveis e provocadores. O xamã é aquele capaz de enxergar no escuro.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
avatar

Últimos artigos dePedro Henrique Gomes (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *