Crítica
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Sinopse
Em 2013, Janaína foi presa em uma manifestação popular. Anos depois, consegue escapar da cadeia e descobre que um golpe político se instaurou no país. Percebendo que todas as suas companheiras de luta estão sendo detidas, ela planeja, junto com uma amiga, roubar o cadáver do ex-ditador Marechal Castelo Branco para usar como moeda de troca com as novas autoridades brasileiras.
Crítica
A narrativa de Tremor Iê (2018) impressiona mais por aquilo que esconde do que pelo que revela. Durante a maior parte do filme, garotas contam umas às outras as violências policiais sofridas, sublinhando os abusos de poder, o conteúdo misógino dos ataques, o caráter persecutório específico a mulheres negras e periféricas. Elas narram as ameaças, os gritos, os empurrões, e as passagens pela prisão, onde eram tratadas com truculência. Elas se assumem lésbicas desde o início, beijam-se diante de um muro com os dizeres “I love suvaco peludo”, em orgulho de sua sexualidade e desejo de se definirem enquanto homossexuais desde o princípio. O espectador precisa buscar em seu repertório as imagens mentais para completar estes relatos em voz indireta, que constituiriam, por definição, uma série de flashbacks evocando a perseguição às artistas de um grupo musical. As confissões surpreendem ao mesmo tempo pela espontaneidade das falas e pelo distanciamento, visto que as personagens parecem ter passado por isso há tempos, discorrendo sobre os episódios sem lágrimas nem furor. Conta-se a violência com o embrutecimento de quem já passou por episódios do tipo diversas vezes e não se surpreende mais.
Estamos diante de um cenário pós-apocalíptico, no caso, uma cidade de Fortaleza imersa na nova ditadura liderada por “Chico Cunha”, figura masculina que possivelmente evoque outros Cunhas da política brasileira, ou talvez apenas represente um nome comum o bastante para abarcar todos os homens. O fato de o ponto de vista pertencer às mulheres, e exclusivamente a elas, traz um aspecto interessante a Tremor Iê. Os crimes de feminicídio costumam recair no descrédito público e institucional dos testemunhos femininos, quando vítimas de agressões e abusos são questionadas pela veracidade dos relatos, por sua “parcela de responsabilidade” na agressão sofrida, pela possível “provocação” aos homens. Ora, neste caso, temos apenas a versão feminina, que se torna a oficial, e aquela compartilhada com todos os espectadores. Este não é apenas um filme feito por mulheres e sobre mulheres, mas também reivindicando um lugar de fala essencial no que diz respeito à violência policial. O fato de o futuro próximo não exigir nenhuma transformação significativa em termos de cenários e ações – basta ter policiais ameaçando as ruas e palavras de ordem masculinas lançadas ao horizonte – também produz um efeito notável. O contexto é tão verossímil enquanto realidade contemporânea quanto como palco de um futuro distópico, o que nos diz bastante sobre a situação atual. A retórica moralista do “cidadão do bem” e do “soldado do bem” dialoga ao mesmo tempo com os governos de extrema-direita e com eventuais ditaduras futuristas.
Além disso, as personagens femininas não estão falando para a câmera, revelando-se nem posando para as necessidades da luz e dos enquadramentos. Elas dialogam umas com as outras, planejam atos e compartilham experiências apesar de nós, espectadores, que ouvimos em segredo, à distância. Escutamos na posição de testemunhas, e não de uma participante do grupo. Por um lado, este recurso impede que conheçamos a fundo cada uma delas, ou mesmo simpatizemos com as histórias específicas, uma vez que elas não possuem objetivos individuais, desejos expressos, passados detalhados. Ao final, talvez seja difícil lembrar o nome de cada uma delas. Por outro lado, isso reforça o aspecto da sororidade e a autonomia destas mulheres, que não existem para o olhar do outro, e sim para si mesmas, para as amigas, colegas e namoradas. O distanciamento do espectador em relação ao grupo favorece a impressão de protagonismo da coletividade, ou das mulheres lésbicas enquanto força unificada. Ainda que Marielle Franco, Mary Lúcia Mesquita, Luana Barbosa dos Reis e outras vítimas de violência sejam citadas ao fim, elas compõem uma experiência que se supõe compartilhada entre todas as mulheres periféricas.
Em alguns momentos, a ficção estabelece certo parentesco com Sete Anos em Maio (2019), média-metragem dirigido por Affonso Uchôa. A cena mais longa no filme das diretoras Lívia de Paiva e Elena Meirelles também se passa à beira de uma fogueira, onde as protagonistas relatam calmamente seus episódios de violência, em detalhes, e sem reconstituição dos fatos através das imagens. Valoriza-se, no caso, o registro oral e a memória subjetiva. No entanto, enquanto Uchôa demonstrava um precioso conceito estético-narrativo (a narração à câmera se transforma em relato a um amigo) e um cuidado excepcional com luz e som, o projeto cearense transparece alguns problemas de produção. Os focos de luz direcionais, de certa artificialidade, se justificam pelo aspecto da ficção científica, porém a captação do som dos diálogos é problemática, dificultando a compreensão de algumas conversas importantes entre as protagonistas. Cada entrada da trilha sonora ocorre em volume e qualidade de som tão diferentes dos diálogos que parecem criar dois filmes diferentes. Mesmo a cena da fogueira demonstra certa dificuldade em sustentar a extensão dos planos.
Ao ler a sinopse oficial, o projeto traz um objetivo claro e uma história linear. Trata-se de uma jovem detida nas manifestações de 2013, descobrindo a ditadura ao sair da prisão, e articulando com as colegas um plano para roubar os restos do ditador Castelo Branco como forma de chantagem às autoridades. A premissa é interessantíssima, embora não esteja presente enquanto tal no resultado. Estes elementos – a passagem do tempo, a prisão, a descoberta da ditadura, o cadáver do marechal – aparecem como episódios isolados, sem real senso de causa e consequência. Caso o filme deseje de fato provocar esta compreensão narrativa, terá fracassado em seus objetivos. Caso busque uma forma muito mais ampla e etérea de performance dos corpos e afirmação da sexualidade, onde as cenas se articulam por alusão, podendo ser intercambiáveis, obtém um resultado mais expressivo. Paiva e Meirelles não aparentam mirar uma fábula política tão direta quanto sua sinopse sugere, privilegiando os momentos de afeto entre as ex-presidiárias e a identificação entre elas pela violência sofrida. Seu discurso político funciona melhor pela representação identitária do que pela alegoria de uma ditadura que jamais terminou de fato.
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