A cinefilia porto-alegrense está vivendo uma semana devastadora. Em amplos sentidos. Se no final de junho passou pela cidade uma mostra robusta com filmes do cineasta húngaro Béla Tarr, conhecido pela longevidade de suas imagens, estiramento do tempo, espaçamento das ações internas (lembrando que, um pouco antes, aconteceu uma mostra com filmes de outro cineasta “preocupado” com a imagem, estou falando de Jonas Mekas), em agosto a Sala P.F. Gastal recebe (está recebendo) oito filmes de Jacques Rivette, mais um documentário de Claire Denis sobre o cineasta. Já na reta final, a mostra Já Não Somos Inocentes não oferece refúgio ao espectador.
Neste final de semana, pelo menos dois filmes indispensáveis serão exibidos: Amor Louco (1969), hoje, e Out 1: Espectro (1974), amanhã. Ambos com mais de quatro horas de duração. Na verdade, há outra versão de Out 1: um filme de quase 13 horas – decerto jamais lançando por estas terras. Esse contato sequencial com as obras de Rivette proporciona uma experiência de desconforto, uma sensação de que o mundo desaba o tempo inteiro (qualquer mundo que seja concebido para servir de base ao pensamento crítico), que as imagens podem ser sempre mais que a simples presunção cinefílica demanda à primeira vista. O espectador de Rivette deve ser um espectador desconcertado. É nesse sentido que ele nunca diz para o espectador o que pensar. Vamos pegar dois filmes para breves comentários.
A Religiosa (1966), se tem conteúdo anticlerical, e tem, é antes escapando da crítica iluminista de “esmagamento” da relação religiosa com suas fontes de força e tensão. O filme coloca as coisas no chão, aprofunda a crença sem corroer as bases pelas quais ela pode se erigir, não incorre no erro clássico de jogar a religião às traças de forma totalitária como pretendeu o pensamento cientificista mais rasteiro (porque ideológico). Mas parece um pouco difícil conceber que a Igreja tenha se assustado e proibido o filme sem, antes, assumir um nível aviltante de ignorância poética.
Não consigo pensar em filme mais honesto com o pensamento religioso. O que me fez lembrar, paradoxalmente, do melhor filme cristão já feito, O Evangelho Segundo São Matheus (1964), dirigido pelo ateu irreconciliável que era Pasolini – filme que, se não me deixo levar por equívocos, foi abraçado pela Igreja. Por outro lado, não penso ser justo com o A Religiosa que reduzíssemos sua potência a um quadrante tão limitado, isto é, a crítica velada à religião. Ora, o filme de Rivette é também um exercício fluído da mise en scène no cinema, configuração do espaço de registro, do movimento, do próprio tempo cedido a cada frase na composição das cenas.
Destaco também Não Toque no Machado (2007), seu penúltimo filme, assustadoramente nunca lançado no Brasil. Deveria. É violenta a beleza da articulação de cada sequência desse filme que se constroi cheio de sutilezas textuais e imagéticas, criando um núcleo narrativo que vai, ironicamente, descosturando os personagens. Fina ironia: é, a um só tempo, sobre uma conquista e um jogo de repulsa. O riso emana do drama cotidiano. A lágrima escorre do “imprevisto alegre”. Obra-prima.
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