Hoy, en esta isla, ha ocurrido un milagro.
El verano se adelantó.
(La invención de Morel)
Quem assistiu ao Alta Fidelidade (2000), filme em que John Cusack vive o vendedor de discos Rob Gordon, deve se lembrar da cena em que o protagonista organiza a sua prateleira de vinis. Na cena, Gordon procura um novo critério para dispor os álbuns. Ordem alfabética ou por ano de lançamento foram superados.
Mas qual a utilidade de tal esforço? Se forçarmos a memória, lembraremos que o personagem de Cusack passava por uma crise no relacionamento. Então por que complicar a vida? É muito mais fácil achar um LP pela letra inicial da banda do que pela cor dos olhos do baterista – ainda mais se este usar cabelo comprido e fizer shows naqueles pubs obscenamente escuros. A resposta é nenhuma. Ou por nada.
A relação que o apaixonado mantém com o objeto da paixão é única, inexplicável. Perguntar-lhe pela razão ou utilidade das suas decisões é como o fiel questionar a sacralidade da hóstia ao recebê-la – inoportuno e profano. O que move o apaixonado (que opera em campo análogo ao da fé) não provém do mundo visível das ações, mas de uma necessidade íntima de realização.
O que está em jogo supera a racionalidade e, por isso, foge à ação comum. Em geral, a finalidade de organizar algo está em encontrar este algo com facilidade. É uma relação simples, com um fim definido. No caso de Gordon, porém, a busca por uma nova classificação tem valor simbólico. A mudança de critério altera a ordem dos discos, e a nova ordem gera um novo significado, livre das referências anteriores. Isto é, a dificuldade de encontrar os discos era menos importante do que a vontade de reconstruir a vida.
Realizamos renovações, como a de d Alta Fidelidade, a todos os momentos. Em Homo Ludens, de 1938, John Huizinga nos apresenta a uma faceta até então impensada do ser humano. A espécie antes conhecida unicamente pela racionalidade (homo sapiens) ganha novo elemento. A hierarquia ou a primazia entre racionalidade e o aspecto lúdico é o de menos. Saber que pensamos e que necessitamos do jogo não cria uma rivalidade ontológica. Pelo contrário. Em um mundo em que a metafísica naufragou diante dos quatro cavaleiros modernos do apocalipse – Nietzsche, Freud, Marx e Darwin – e o conhecimento se dá pela simples experiência. E a prisão no passado é o pior dos mundos para a espécie lúdica.
A quimera da repetição temporal tem vários expoentes no cinema. Não por menos, pois a sala escura é a melhor maneira de falsificar, adulterar e corromper os segundos. Para ficar em dois exemplos antagônicos, nos lembremos de Feitiço do Tempo (1993) e O Ano Passado em Marienbad (1961). A comédia protagonizada por Bill Murray e o redemoinho sensorial de Alain Resnais. No primeiro, Murray está preso à cidade em que foi trabalhar, destinado a repetir o mesmo dia; no segundo, o duvidoso caso de amor entre um casal, impossibilitados de avançar, algemados à memória, presos no luxuoso hotel barroco em que se encontram.
Pelo gênero, o filme de Murray é mais leve. O desejo de poder estar no tempo e com ele alterar a realidade é um sonho antigo. Talvez seja até mesmo o propósito do cinema. Mas tanto na comédia quanto no drama, o aprisionamento é um cadafalso. Aos poucos, a necessidade de estabelecer e vivenciar o novo se torna iminente. Iminente mas impossível. A comédia perde a graça; o drama ganha contornos de punição. Obrigados a transitar em um cenário ocupado por fantasmas, dia após dia diminui-lhes a possibilidade de realizarem algo novo. Estacados na repetição interminável das horas, os personagens se desumanizam.
Alta Fidelidade é um filme extremamente competente. Mesmo depois de realizar A Rainha (2006), Stephen Frears não teve um filme tão popular e adorado quanto o com Cusack. Isto porque Gordon fala de igual para igual com seus espectadores. Ao ordenar os livros, ele fala da vida; ao falar da vida, outros tantos o assistem na expectativa de ordenar filmes, canecas, quadros, a sala, trocar a cor das paredes, mudar de apartamento, comprar um cachorro. Enquanto Gordon muda de vida, nós mudamos a nossa.
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