Um dos maiores nomes do cinema brasileiro contemporâneo, Daniel de Oliveira tem menos de duas décadas de carreira, período que foi suficiente para conquistar algumas das principais premiações nacionais e internacionais – dois Guarani, um Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, troféus nos festivais de Gramado, Toronto, Los Angeles, Miami, Nova Iorque, Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros. Com uma filmografia de quase vinte títulos, está de volta às telas agora com o drama esportivo 10 Segundos para Vencer, que passou pelo 46o Festival de Gramado – de onde saiu premiado com dois kikitos – e é, assim como tantos outros trabalhos anteriores do ator, inspirado em uma história verídica. E aproveitando sua passagem pela serra gaúcha, nós conversamos com exclusividade com o astro, que falou sobre o projeto, sua identificação com o boxeador Éder Jofre e qual a importância de um filme como esse nos dias de hoje. Confira!
Como foi esse mergulho na vida do Éder Jofre?
Tudo começou há muitos anos. Tenho o livro O Galo de Ouro, do Henrique Matteucci, tinha visto o filme Quebrando a Cara (1986), do Ugo Giorgetti, gostava muito de ir atrás de tudo sobre o Éder. Por uma dessas coincidências da vida, minha ex-mulher, a Vanessa Giácomo, foi empresariada, numa certa época, pela mesma pessoa que um dia foi a empresária do Éder Jofre. Quando soube disse, pedi pra ela: “puxa, manda um abraço pra ele, diga que gosto dele pra caramba”. Isso acabou passando, e quando fui fazer o filme do Flavio Frederico, o Boca (2010), em São Paulo, um dia depois das filmagens, tava tomando banho quando me deu um estalo e disse pra mim mesmo: “vou fazer o Éder Jofre no cinema”.
Mas pelo jeito não ficou só na vontade…
Foi uma explosão, falei alto, me arrepiei todo. Saí molhado do chuveiro, consegui o telefone dele e liguei: “Éder, meu nome é Daniel, você não me conhece. Fiz o Cazuza no cinema, o senhor não deve ter visto, mas quero fazer você em um filme. Como é que faço?”. Só que ele me jogou um balde de água fria: “olha, já tem alguém fazendo um negócio de filme meu”. Murchei na hora, agradecei ter me atendido, e desliguei. Já era, né? Não tinha o que fazer. Acontece que uns nove anos se passaram, quando o meu professor de krav maga me manda uma matéria em que aparecia o meu nome sendo cotado para interpretar o Éder Jofre. Quase não acreditei quando li. Foi assim que esse mergulho começou.
Quando conversamos, há alguns meses, sobre o Aos Teus Olhos (2017), você já falou com bastante entusiasmo sobre o 10 Segundos para Vencer. Manter esse comprometimento por tanto tempo não é algo que acontece a toda hora.
Ah, com certeza. Acontece que, entre aquele telefonema com o Éder e essa notícia de jornal, simplesmente esqueci do assunto. Ele hibernou para mim. Nem fui atrás descobrir quem estava fazendo, era como se tivesse evaporado. Simplesmente desliguei o telefone e deixei pra lá. Até o dia em que caiu no meu colo esse projeto. No momento em que me mandaram o link dessa notícia, me perguntando se era verdade ou mentira – algo que não sabia nada a respeito – no outro dia mesmo, quando fui treinar, já perguntei: “quem é o cara aqui no Rio que pode me dar aula de boxe?”. Me indicaram o Cesário Bezerra, liguei pra ele, nos acertamos e logo comecei a treinar, antes mesmo de me convidarem para o filme. Essa história durou onze meses! Me preparei por quase um ano para fazer o Éder, absolutamente no escuro!
Você sempre foi um cara muito esportivo, que gosta de estar na ativa. Faz parte da tua rotina, não é mesmo?
Sim. Tem que mexer o corpinho, não tem jeito. Mas essa preparação, específica para ser o Éder Jofre, fiz por minha conta. No mínimo, estaria aprendendo boxe. No máximo, faria o Éder Jofre. Depois, quando me confirmaram que, sim, seria eu que faria o filme, além de ter incrementado os treinamentos, fiz um negócio que chamei de “incursões no mundo do boxe”, que era ir nas academias, visitar e conhecer. Onde tinha ringue no Rio de Janeiro, eu estava por lá. Fui muito bem recebido em todas. Uma delas, aliás, fiquei íntimo, pois era do tio da Sophie Charlotte, minha esposa. Ou seja, era a minha família Zumbano, por assim dizer. Ele é professor de boxe em Niterói. Foi quando entrei totalmente no mundo do boxe.
Esse preparo físico e toda essa transformação, você diria que foi o maior desafio para fazer esse personagem?
Um dos, com certeza. Mas outro grande desafio, também, era entrar nesse universo paulista, essa relação com o pai. É um filme muito emotivo nesse sentido. Tinha que estar preparado também para fazer esse lado. O boxe, em si, é um treinamento muito pesado. Era muito suor e porrada. E queria treinar para valer, nada de fantasia do cinema.
Vocês estão realmente lutando nas cenas de combate do filme?
Sim, aquilo é luta de verdade. Não teve nada ensaiado, do tipo: “você me dá um soco aqui e eu caio para o outro lado”. Não, a coisa foi real. Teve zero coreografia nesse filme. A gente subia no ringue e esquecia de tudo. Os câmeras, o diretor, os demais atores tinham que se adaptar ao que nós estávamos fazendo ali. Cada momento era único. E isso foi coisa do Lula Carvalho, nosso diretor de fotografia, e do José Alvarenga Jr, o diretor. Era problema deles. A minha concentração estava na luta, e em nada mais. De vez em quando, obviamente, quando a câmera nos pegava por baixo, daí não tem jeito, tem que ser na base do ensaio, tinha que lutar igual ao lango-lango (risos). Às vezes batia na câmera, o soco saia de outro jeito, mas tinha que ser assim, no improviso. Graças a Deus tínhamos o Lula, que é um mestre, e que ia se encaixando de qualquer jeito.
Como vocês chegaram ao formato ideal para filmar essas cenas?
Logo quando me convidaram, cheguei para o Alvarenga e disse: “cara, esse é um filme de boxe, e estou treinando há muito tempo. Então, comigo não tem essa de ‘dá um soco aqui que vou virar minha cara para lá’. Não, se der o soco desse jeito, vamos ver se você vai fazer minha cara virar. Porque eu to aqui, e to no jogo”. O Cesário foi muito importante nesse processo. Ele soube escolher os lutadores. Teve um que veio de Cabo Verde, já tinha mais de 114 lutas no currículo. Se ele quisesse me quebrar, eu não estaria aqui para contar a história (risos). O cara tem uma agilidade incrível. Todos eram grandes lutadores.
Vamos falar dessa parceria com o Osmar Prado. Esse não é o primeiro trabalho de vocês juntos, e você sempre fala dele com um carinho muito grande…
É porque não tem como falar dele de outro jeito. O Osmar é um cara incrível. Muito amoroso, afetivo, efusivo, cheio de personalidade, parceiro. É um amigo de verdade. A gente já dividiu as coxias no Hoje é Dia de Maria (2005), que foi muito legal, uma experiência bem interessante que tivemos com o Luiz Fernando Carvalho. Depois fizemos Nada Será Como Antes (2016), a série do José Luiz Villamarim e do Walter Carvalho, em que fazíamos também pai e filho, e logo em seguida emendamos o 10 Segundos para Vencer. A gente ficava nos bastidores enchendo a cabeça de todo mundo: “olha só, daqui a pouco vamos fazer o Éder e o Kid Jofre” (risos). O Villamarim nem podia mais ouvir, “poxa, vocês só ficam falando desse filme”. É uma parceria, mesmo.
Você tem uma galeria de personagens muito fortes no cinema, reais ou fictícios. É isso que te atrai ao escolher cada novo projeto?
Puxa, com certeza. Do Festa da Menina Morta (2008) ao Aos Teus Olhos (2017), por exemplo, são todos muito intensos. Mas acho que sim, ainda que cada projeto chegue até a gente de um jeito ou de outro. Cada um tem sua particularidade, a sua história. O Aos Teus Olhos, por exemplo, tá rodando o planeta. Já fui pra Cuba, Guadalajara, Chicago, ganhamos Festival do Rio e a Mostra de São Paulo. Dá pra ver que fizemos uma história, tem ali um filme interessante. E tudo começou com um convite da Carol Jabor, a diretora. Lembro que estava sentado, encostado numa parede, quando o telefone tocou. Quando vi que era ela, já pensei: “vem coisa boa aí”. Daí ela me contou que era uma história baseada em um livro, de um autor espanhol – e me mandou o volume, e também o Boa Sorte (2014), filme anterior dela, que até já tinha visto. Depois que terminei de ler, fiquei ainda mais intrigado, pensando em como seria adaptar aquilo para a tela grande. Como iria virar um roteiro de cinema? Mas daí fiquei sabendo que seria o Lucas Paraizo, com supervisão do George Moura. Bom, são dois feras, dá pra ficar tranquilo. Então vamos fazer! E foi uma escolha mais do que acertada!
O segredo é se cercar das pessoas certas, então?
Exatamente. E por todo os lados, quem vai fazer a direção de fotografia, quem vai cuidar da montagem. Cada novo filme é um mergulho que faço. Gosto de estar atento a todas as etapas de cada processo. Não sou desses que chega no set só na hora de filmar, diz suas falas e depois vai embora. Gosto de interagir. E de ficar por dentro de tudo, colaborando sempre, entregando o meu melhor.
10 Segundos para Vencer se passa no início dos anos 1960, um período de muito ufanismo, uma época de muitos heróis. Hoje estamos passando por um momento bem adverso. O que um filme como esse tem a dizer ao Brasil de 2018?
Hoje a gente vive num país despedaçado. Totalmente desorganizado, violento, cheio de cretinos no poder. Nós sabemos de tudo isso. A gente vê no dia-a-dia, nas ruas, na internet, conversando com as pessoas, em tudo quanto é lugar. Que país é esse?, não é mesmo? Mais do que nunca, precisamos resgatar esses grandes caras. A maioria das pessoas que lutam boxe, hoje, se não fazem por prazer, por diversão, fazem para sobreviver, porque estão buscando um sonho. Mesmo atletas, já consagrados no meio, trabalham diariamente, acordam cedo e ralam pra caramba. O país não tem investimento no esporte. As Olimpíadas foram uma grande farsa, com mentiras que estão aparecendo agora, esse legado desleixado que ficou para nós carregarmos. Tudo se perdendo, aquela Floresta dos Atletas, no Rio de Janeiro, que talvez nunca venha a existir. É um paralelo com a floresta que realmente estamos devastando nesse país. Então é isso no que acredito, um filme como esse é importante, sim, ainda mais num momento como esse. Até politicamente falando.
(Entrevista feita ao vivo em agosto de 2018 em Gramado)
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