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Foi o próprio Hugo Carvana que quis fazer um filme contando sua história. E como ninguém se ofereceu para dirigi-lo, ele pediu à assistente de direção Lulu Corrêa, amiga e parceira profissional de longa data, que se prontificou a encarar a empreitada. Só que, com pouco mais de alguns meses de pré-produção, o grande ator e cineasta brasileiro faleceu, deixando a diretora com apenas uma entrevista filmada e o desafio de completar esse “último” desejo do amigo. O resultado desse processo agridoce é Carvana: Como Se Faz Um Malandro (2018), documentário exibido no Cine Praça da 14ª CineOP na noite de sábado. Na manhã seguinte, Corrêa conversou com o Papo sobre a escolha de focar a obra na relação do amigo com o cinema, a dificuldade de encarar o material após a morte de Carvana, em 2014, e as surpresas que teve durante a pesquisa e realização de seu primeiro longa na direção.

 

Você disse na apresentação do filme que conhecia o Carvana há 18 anos na época da produção do longa. Como vocês se conheceram?
Meu primeiro encontro com o Carvana foi quando assisti a Vai Trabalhar, Vagabundo (1973). Tinha uns 14 ou 15 anos e fiquei muito feliz com o filme. O que é engraçado, porque os personagens não tinham nada a ver comigo, uma adolescente do interior que nasceu em São Paulo e cresceu no Espírito Santo. Mas o vi mais de uma vez, levei colegas para assistir. Para mim, era um bando de hippie transgressor, mas com leveza. Eu saía feliz. Aí, anos depois fui estudar cinema na UFF e quase fiz um estágio em Se Segura, Malandro! (1978), mas alguém ficou na minha frente. Só quando rolou O Homem Nu (1997), o diretor de produção era um cara com quem eu tinha trabalhado muitas vezes e me indicou para a assistência de direção. Isso foi em 1996. Foi quando vim a conhecer o Carvana e trabalhar com ele.

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Por que vocês deram tão certo, e a parceria durou tanto?
O Carvana tinha acabado de sair de uma falência com o Vai Trabalhar, Vagabundo 2: A Volta (1991). E estava muito preocupado em cumprir os planos, uma obsessão por controle. E eu era super organizada. Então, foi uma parceria que deu certo logo de cara. Lembro que eu falava “Carvana, vamos filmar a frente do apartamento de tal personagem porque você pode precisar na montagem”. E ele respondia “olha lá, não quero falir de novo”. Aí, quando fez o Apolônio Brasil: Campeão da Alegria (2003), que era uma produção bem mais complexa, me chamou.

 

E essa parceria acabou extrapolando o profissional?
Sim, ficamos amigos. Eu frequentava aniversários, nos falávamos por telefone. O Carvana era uma figura muito reservada. Não era aquele Carvana da tela. Gostava de ficar sacando as pessoas. Mas acho que fui conquistando ele.

 

Falando desse contraste entre a persona Hugo Carvana e o homem real, o que você acha que de mais surpreendente as pessoas descobrem sobre ele no teu filme?
A ideia desse filme partiu do próprio Carvana. Um dia, virou para mim e disse “você não quer fazer um filme sobre mim? Ninguém quer fazer um filme sobre mim”. Falei “é claro”, e me disse que eu poderia fazer o filme que quisesse. E decidi fazer um longa sobre o Carvana no cinema porque pouca gente conhece a trajetória dele na telona, associam ele muito à televisão, novela. E ele era muito apaixonado por cinema, os causos sobre Chanchada e Cinema Novo que conta no filme, ele contava sempre nos sets. Sempre com a mesma emoção. Decidi fazer uma trajetória cronológica até ele virar diretor – Chanchada, Cinema Novo, Marginal. Depois, a gente começa a saltar e quebrar um pouco a cronologia. E o que eu mais ouço é gente dizendo “nossa, não sabia que ele tinha feito tantos filmes”. A outra coisa é que se surpreendem com esse lado dele amoroso no set, com equipe, elenco, da patota, da trupe, dos amigos. Ele abraça os amigos. 

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Cena do documentário Carvana

A ideia do filme partiu do próprio Carvana, então, mas antes da finalização, ele veio a falecer. Como isso afetou o processo e o resultado final do documentário?
Eu fiz um roteiro, planejando que ele daria três entrevistas ao filme, em lugares diferentes. Aí, tentamos captar recursos, editais, e isso demorou. Nesse período, o Carvana ficou doente e meio inquieto para dar essas entrevistas logo. Pedi para esperar um pouco, e me disse “não, já dei entrevista pro filme do Pitanga, do Chico Buarque… quero dar minha entrevista pra você”. Eu estava trabalhando em outro projeto, mas ele insistiu tanto que tirei um dia de folga e fui gravar a entrevista na casa dele. Achava que ia fazer outras entrevistas – na verdade, nem sabia se ia usar aquele material. E ele faleceu dois meses depois. Fiquei “e agora, como termino esse filme?”. Isso foi em 2014. Por um ano, guardei o material, não conseguia nem ver. Passamos no edital do MinC, veio o golpe, não sabíamos se o dinheiro ia ou não ia sair… mas, em 2016, comecei a ver os making of’s todos, fazendo uma pré-seleção a partir de 60 horas de material. Nem conseguia ver direito porque ainda era algo meio doído, mas quando finalmente saiu o dinheiro, os contratos, me vi obrigada a fazer algo. Só que era duro ver o material, o Carvana estava presente ali, me dava muita tristeza. O próprio dia da filmagem foi lotado de emoção. E infelizmente, ele não viu o filme.

 

Nesse processo todo de realização e pesquisa, o que você descobriu sobre o Carvana que não sabia antes?
O Carvana contava as coisas com muita graça. E tinha uma facilidade incrível de imitar os outros. Mas quando fomos fazer a entrevista, percebi que ele já não estava tão a fim de recontar algumas histórias. Eu insistia em algumas que não estão no filme, mas sabe quando a pessoa não está a fim de falar disso? Ou contava muito burocraticamente. E me surgiu um Carvana muito de reminiscências, de infância… uma coisa bonita, quando fala de ver os músicos tocando na confeitaria, que botamos no começo do filme. E que eu nunca tinha visto. Tive que perceber que ele estava numa outra onda.

 

Tem muitos filmes dele que acabaram ficando de fora do documentário – até porque seria impossível catalogar toda a filmografia do Carvana em menos de 2h. Você acha que essas exclusões foram meio resultado dessa autoedição dele?
Não. Existe uma coisa chamada tirania do mercado. Esse filme teve um corte com dez minutos a mais. Mas começaram a falar “ah, tá muito grande”. E você corta, mas é uma ilusão. Porque você faz isso, e não existe mercado. Você vai para uma sala e fica uma semana em cartaz. O Carvana tem uma espécie de “trilogia”, que é o Vai Trabalhar, Vagabundo (1973), Se Segura, Malandro (1978) e Bar Esperança (1983), que foi o filme mais bem-acabado e aclamado dele. O Se Segura foi a maior bilheteria. Quis destacar esse tripé da carreira dele. Já O Homem Nu (1997), por exemplo, era importante para mim porque foi quando comecei a trabalhar com ele, mas foi um filme que sofreu muitos cortes. E houve vários que não entraram, como o Ipanema, Adeus (1975). A Queda (1978) também não está lá. É uma burocracia mexer com essa coisa de direito de imagem, ter acesso aos filmes.

 

Mas teve algum filme ou tópico que ele se recusou ou não quis abordar?
Não. 

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Cena do documentário Carvana

O convite partiu do Carvana, mas você acha que já era um desejo seu dirigir? Tem novos projetos engatilhados?
Para dirigir, acho que é preciso muita coragem. São orçamentos estratosféricos, você mata um leão por dia. Algo que o Carvana tinha. É preciso uma leveza para saber lidar com isso, e sou muito tensa. Às vezes, estávamos numa filmagem complicada, ele via minha cara toda rígida e dizia “fala, Lulu, o que não vai dar certo hoje?” (risos). Mas tenho roteiro de longa de ficção pronto, escrito. Já dirigi curtas e médias lá atrás. Tenho uma formação muito técnica, como montadora e assistente de direção. E trabalhei muito, com poucas pessoas, especialmente o Nelson Pereira dos Santos e o Carvana.

A 14CineOP segue até a próxima segunda, dia 10. A programação completa pode ser conferida no www.cineop.com.br. O crítico viajou a convite do evento.

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é jornalista e crítico de cinema, membro da ABRACCINE – Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
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