Às vésperas de completar 60 anos de carreira nas telas, Othon Bastos é uma verdadeira unanimidade nacional. Com mais de uma centena de créditos no cinema e na televisão, foi premiado nos principais festivais de cinema do país (Gramado, Brasília) e também no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Trabalhou sob o comando dos maiores mestres da produção nacional – Glauber Rocha, Leon Hirszman, Ruy Guerra, Anselmo Duarte, Julio Bressane, Nelson Pereira dos Santos – e também com nomes de destaque da nova geração – Walter Salles, Bruno Barreto, Helvécio Ratton, Sérgio Rezende. Tudo isso o qualifica como um intérprete versátil, capaz de dar luz ao menor dos personagens, ao mesmo tempo em que consegue comandar com autoridade até o mais duro dos protagonistas. Por tudo isso, foi escolhido como o grande homenageado do 16º Fest Aruanda, evento que tradicionalmente encerra o calendário cinematográfico, e que nesse ano ocorreu de 9 a 15 de dezembro. Foi com festa que os cinéfilos de João Pessoa, na Paraíba, receberam o ator para essa mais do que justa celebração. O Papo de Cinema estava presente, e aproveitou para ter uma conversa exclusiva com o artista. Confira!
Othon, como você recebeu a homenagem do 16º Fest Aruanda?
Fiquei sabendo através do Amilton Pinheiro, que é um dos curadores do festival. Fiz um trabalho com ele, e na ocasião me convidou: “queria te levar para o Aruanda”, me disse. Na hora lembrei da música do Edu Lobo, mas me explicou que se tratava do festival. O Lima Duarte havia sido homenageado no ano anterior, e tinha sido muito bonito. Mas minha resposta foi: “não sou homem de homenagens”. Sabe, acho que você tem que fazer o que pensa ser importante na vida sem se preocupar com a posteridade. Sou muito Mario de Andrade nesses casos: “a posteridade me ofende” (risos). O importante é o que se vive, faz e deixa, mas não com o intuito de posteridade. Quando você vive com uma pessoa, o importante é o que vocês dois compartilham juntos. A vida é uma amiga, uma mulher maravilhosa que você tem que acompanhar, gostar sempre dela. Não estou pensando em deixar legado. Pra isso, o Google tá aí, com tudo que você fez e não fez também.
Além da homenagem, você é também o rosto do festival nesse ano, com essa imagem icônica.
O cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) nasceu da seguinte maneira. Glauber Rocha, o diretor, pegou várias fotos. E eu nem sou o protagonista do filme, que era o Geraldo Del Rey, um belo ator – e um homem muito bonito também – e o Mauricio do Vale, que era o Antônio das Mortes. Esse era o personagem mais forte, da maneira como era vestido, com aquela capa. Mas Glauber colocou essas imagens uma ao lado da outra, e o autor do pôster, o Rogério Duarte, olhou para essa foto minha e disse: “quero essa para o cartaz”. E por que nessa imagem estou com o facão em frente ao rosto? Porque é o momento de reflexão do Corisco, está fazendo uma oração. “Eu, José, com a espada de Abraão, serei coberto com o sangue da Virgem…”. Como se estivesse fechando o corpo contra o Antônio das Mortes. É um instante divino do Corisco. Você não é mau o dia inteiro, nem bom vinte e quatro horas por dia. “Obrigado, senhor, por esse momento de lucidez”, como diz Fernando Pessoa. São os segundos antes do enfrentamento, de homem para homem, de Deus para o Diabo.
Com mais de uma centena de filmes e outros trabalhos que você já fez, com certeza Deus e o Diabo na Terra do Sol assume um lugar especial, certo?
Deus e o Diabo na Terra do Sol não é o grande filme da minha carreira. Mas é a maior experiência cinematográfica que já vivi. Foi tudo feito na base da descoberta. Quando Glauber me deu o roteiro e li, a primeira coisa que sugeri era acabar com esse negócio de flashback. Não precisava cortar o filme para falar do passado. Era excessivo. Vamos fazer um personagem brechtiano, com ele próprio narrando a história. Esse momento é narrado pelo Corisco. A primeira fase do filme é muito stanislaviskiana. Que é o sofrimento do Antonio, do Manuel, todos em dor. Em duas passagens o Manuel, personagem do Del Rey, faz o mesmo movimento: beijar os pés de Deus e depois do Corisco. Esse personagem era a minha razão, pensar como ele pensava, e não como sentia.
Se não me engano, você estreou nos cinemas já com o clássico, participando de O Pagador de Promessas (1962). Confere?
Na verdade, minha estreia foi em Sol Sobre a Lama, do Alex Viany, que foi filmado em 1960, mas lançado só em 1963, depois do Pagador. Foi meu primeiro filme. Naquela época, estava construindo um teatro, ganhando dinheiro, e trabalhando muito. Sol Sobre a Lama era sobre a luta dos barraqueiros da Feira de Água de Meninos, em Salvador, contra uma multinacional do petróleo, pois o terreno era dela. Depois que fui trabalhar com o Anselmo Duarte e com o Glauber Rocha.
Que outros filmes da tua trajetória você citaria como mais marcantes?
O grande filme da minha carreira, como interpretação e vivência, foi um que não teve roteiro, pois era o próprio livro: São Bernardo (1972). É a minha melhor atuação. Após ter feito Deus e o Diabo na Terra do Sol, permaneci na Bahia. Não fui para o Rio, para a estreia e badalação. Segui trabalhando no meu teatro. Pra mim, naquele momento, era só mais um filme, não imaginava que teria toda aquela repercussão. E foi uma loucura, as primeiras sessões foram verdadeiros deslumbres, as pessoas ficavam espantadas. “Quem é esse ator? Quem é esse Glauber Rocha?” E começaram a chegar até mim convites para muitos filmes, mas sempre para papeis de cangaceiros, assassinos, estupradores, todos muito violentos. Eram todos iguais. Só respondia: “obrigado”. Passei quatro anos sem filmar, por escolha minha. Não queria cair dentro de um processo que depois não conseguiria sair. Poderia ter virado um John Wayne, passar o resto da vida fazendo as mesmas coisas. Não queria ficar nessa linha mais de personalidade do que de interpretação – apesar do John Wayne ter feito lindos filmes.
E como o São Bernardo chegou até você?
Aconteceu que tive que ir até o Rio de Janeiro. Lá encontrei o Paulo César Saraceni, que me disse: “que bom te encontrar, quero fazer um filme com você”. Na hora me armei e disse: “olha só, antes de qualquer coisa, não faço bandido, viu?”. Ele ficou rindo: “não é nada disso, quero fazer Machado de Assis”. Foi quando fiz Capitu (1968), meu primeiro filme após Deus e o Diabo, quatro anos depois. Brincar com a literatura me encantou. Digo que São Bernardo não tinha roteiro porque o Leon Hirszman, nosso diretor, ia fazendo as cenas capítulo por capítulo do livro do Graciliano Ramos. Nós chegávamos no hotel à noite, e ele nos falava: “amanhã vamos filmar o capítulo 19”, e todo mundo ia estudar aquelas páginas. Tivemos horas e horas de ensaios. Primeiro porque era desse jeito que tinha que ser feito, e segundo porque não havia dinheiro, e uma lata de celuloide era muito cara. Era preciso fazer de primeira.
É um dos personagens que você carrega com maior carinho?
São Bernardo representou uma virada para mim. Depois dele, pude fazer Os Deuses e os Mortos (1970), do Ruy Guerra, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), também do Glauber. Enfim, estava conseguindo diversificar.
Um encontro importante foi com Júlio Bressane, em Sermões: A História de Antônio Vieira (1989).
Quando o Bressane me fez esse convite, fiquei assustado. “Rapaz, você quer que eu faça o Vieira?”, me perguntei. Era uma loucura. Só podia ser louco. Mas tava empolgado, e acabou me convencendo. O Júlio Bressane é uma maravilha de pessoa, um homem inteligentíssimo, muito preparado, que transborda cultura. Por isso resolvi fazer, pois era com ele. E saiu um filme muito belo.
Você é um marco do Cinema Novo que conseguiu fazer uma transição tranquila para as produções da retomada do cinema brasileiro.
Nem tanto. Há uma certa ilusão nessa impressão. As coisas que fiz foram através do Cinema Novo. O filme da Laís Bodanzky, Bicho de Sete Cabeças (2000), só veio porque havia feito narrações para o pai dela, o Jorge Bodanzky, que era um ótimo diretor de curtas-metragens. Havia trabalhado muito ele, que foi quem me apresentou a ela. Tinha visto um curta dela, chamado Cartão Vermelho (1994), e tinha adorado a maneira como lidava com os atores nessa história. Então, claro que iria fazer.
Outro filme muito bonito que você fez, e novamente com o Rodrigo Santoro, foi o Abril Despedaçado (2001).
Ele também está ótimo nesse filme. Ficamos muito amigos, o Rodrigo é um grande ator. Cinema é isso, te proporciona uma dimensão muito grande de amizade. Como diz o Murilo Mendes, “ser amigo é dividir a vida”.
Essas homenagens, como a recebida em Gramado, há alguns anos, e agora no Fest Aruanda, são uma forma também de dividir a vida?
É uma forma de reconhecimento. Reconhecem o teu trabalho e querem te homenagear. Pra mim, não precisava de nenhuma badalação. Chegava, pegava o troféu, agradecia e ia embora. Mas tudo acaba ficando muito vultuoso. É preciso tomar cuidado para não ver esses momentos como se fossem comuns. “Ah, fiz um filme e já quero ser homenageado”. Não é assim. Por exemplo, nunca ganhei um prêmio por Deus e o Diabo na Terra do Sol. A gente nunca sabe, portanto. Naquele ano, o longa mais premiado foi o A Ilha (1963), do Walter Hugo Khouri. A história mostrou qual dos dois foi mais importante. Hoje em dia, ninguém lembra de A Ilha. Mas o Deus e o Diabo na Terra do Sol segue até hoje relevante. Por isso que digo, acho bonitas essas homenagens. Mas é bom manter o pé no chão. Como diz Jung, “uma árvore, para crescer aos céus, as raízes precisam estar próximas do inferno”.