Após conquistarem nada menos do que oito kikitos no Festival de Gramado deste ano – inclusive os de Melhor Filme e Atriz – o cearense Pacarrete (2019) e sua protagonista, a paraibana Marcélia Cartaxo, desembarcaram na capital do Espírito Santo para abrir o 26o Festival de Cinema de Vitória, onde integra a mostra competitiva nacional de longas-metragens. A incansável estrela – que será a homenageada deste ano no LABRFF – Festival de Cinema Brasileiro de Los Angeles – é, na verdade, a grande musa do evento capixaba neste ano, pois participa ainda de outro longa na disputa – o documentário O Seu Amor de Volta (2018), de Bertrand Lira, no qual surge como uma mistura dela própria e de uma das suas personagens mais famosas, a icônica Macabéa, de A Hora da Estrela (1985), revisitando um desempenho que lhe valeu o cobiçado Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, na Alemanha. Para saber um pouco melhor sobre esse grande momento que Cartaxo está vivendo, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com ela. Confira!
Marcélia, você está com dois filmes na mostra nacional de longas do 26o Festival de Cinema de Vitória – Pacarrete e O Seu Amor de Volta. Como chegaram esses convites?
Allan Deberton havia me convidado há muitos anos, há mais de uma década. Conheci o Allan no primeiro curta dele, Doce de Coco (2010), quando ele havia recém se formado, e me chamou para uma pequena participação. Foi nessa época que me abordou para falar dessa personagem, uma moradora daquela cidade que tinha uma história muito louca. Ela havia sido de fato uma artista, uma bailarina, mas também era uma louca. A cidade não a absorveu, e ela acabou enlouquecendo com isso. Fui ficando com essa coisa na cabeça, ao mesmo tempo em que ia atrás das qualidades dela. Além de dançar, também tocava piano, falava francês, se vestia de um modo meio nobre, refinado. Era muito apaixonada pelas coisas francesas. Principalmente, pelas músicas.
Foi um bom tempo, então, para você ir mergulhando no universo dela.
Com certeza. Mas, por outro lado, não acreditei muito em tudo que esse garoto havia me contado (risos). Outras coisas aconteceram, trabalhos, fui me ocupando de diferentes formas, minha vida mudou muito nesse tempo todo. Depois de dez anos, ele chegou e disse: “ganhei o edital e vamos fazer o filme”. Jesus, entrei em desespero! Como ia dar conta dessa personagem? Não sou bailarina, e precisava ter essa postura especial, diferenciada. Adquirir um pouco essa arte. Pra mim foi uma grande novidade, mas também um enorme sofrimento, pois me exigiu um trabalho pessoal muito grande. Nem me preocupava com o francês ou com a necessidade de cantar, mas com o meu condicionamento físico.
Você diria que Pacarrete foi uma das suas personagens que mais lhe exigiu?
Foi a que mais cobrou de mim, certamente. E que me deu mais medo também. Emagreci muito para poder vivenciar essa mulher. Mexe muito com o psicológico da gente.
Como o Bertrand Lira a abordou com O Seu Amor de Volta?
Quando voltei para a Paraíba, tive que arranjar um emprego fixo, e acabei indo trabalhar na prefeitura de João Pessoa. Coincidiu de estar envolvida com as aprovações dos editais locais. Foi incrível, pois tive a oportunidade de vivenciar três anos de projetos incríveis, com muita produtividade. Essa ‘primavera’ que a gente fala que aconteceu no Nordeste, se deu também na Paraíba. Nunca haviam sido realizados longas-metragens no estado, e no primeiro ano dessa iniciativa foram feitos três, e mais dez curtas, mesmo com pouca grana. No ano seguinte conseguimos quatro longas, outros dez curtas e um telefilme. E no terceiro, aumentamos um pouquinho os recursos, e foi quando o Bertrand apareceu com essa ideia.
Foi nesse momento que ele te fez esse convite?
Pois então, ele chegou até mim e pediu para eu contar a história da Macabéa. Esse relato seria usado em O Seu Amor de Volta (Mesmo que ele não Queira). À princípio, seria apenas eu e mais um outro ator. Mas o tempo foi passando, vieram outras pesquisas e a coisa toda foi ganhando outra proporção. Eu ficava questionando, e me dizia: “é só contar o que Macabéa viveu ao lado de Olímpico, esse amor que não deu certo”. Fui lá e fiz. Mas teve mais.
No catálogo do festival, o filme aparece como documentário. Você não é creditada nem como Macabéa, nem como Marcélia. O quanto tem de cada uma em cena?
A Macabéa é logo no início. Quando começa a contar o que viveu ao lado desse homem, e você percebe essa narrativa de rejeição, o desafeto, a grosseria dele. Quem viu A Hora da Estrela, irá se dar conta que é a personagem ali, resgatando um romance que não deu certo. Quando conclui a história dos dois, passa para uma outra camada de leitura, que é quando entra a minha história pessoal.
Trata-se, então, de um docudrama, um documentário ficcional?
Exatamente. Tem um pouco de tudo. A gente acha que mexer com amor é algo corriqueiro, pois todo mundo tem uma experiência, única para cada um de nós, mas todas parecidas entre si. Existe uma história cultural de muita violência dos homens que até hoje nós, mulheres, não superamos. Sem falar dos preconceitos, das maldades. O que as pessoas querem é resolver seus problemas imediatos e tratar de fazer justiça com as próprias mãos. Faz muito tempo que queremos reverter esse quadro, buscando mais respeito, pela mulher e por todos os outros.
Ou seja, o filme tem um lado ficcional, mas tem também muito da tua história?
Tem muito da minha história de vida, sim. Assim como também dos outros personagens, como a Zezita Matos, por exemplo. Do início ao fim, é um grande entremeio.
E como está a vida pós-Festival de Gramado, com aquele caminhão de kikitos que vocês ganharam?
Tá maravilhoso! A gente não esperava tudo aquilo. Claro que, pela temperatura daquela noite quando nosso filme foi exibido, até havia uma torcida que eu ganhasse como Melhor Atriz. Mas todos aqueles prêmios? Foi uma grande surpresa. Teve até para o João Miguel, para a Soia Lira. Pelo bolão que a gente fez, estava apostando em no máximo quatro kikitos. O Allan Deberton podia levar roteiro, ou mesmo o de Melhor Filme. Queria muito também o prêmio de Fotografia, pois acho que ela ainda não foi reconhecida como merecia (o kikito foi para o gaúcho Raia 4, 2019). Torço muito para que aqui em Vitória essa conquista venha.
Marcélia, você começou no cinema já com uma super exposição. E a cada novo filme seu – Madame Satã (2002), A História da Eternidade (2014), Big Jato (2015) – é mais uma coleção de prêmios que conquista. Como lidar com os altos e baixos da carreira de atriz no Brasil?
Quando recebo um personagem, quero fazer o melhor que puder. Me envolvo com ele em todas as camadas possíveis. Começo a pesquisar a respeito, observo muito, leio profundamente, faço um trabalho de mesa muito grande. Acho que é pela intensidade que sinto e vejo as coisas. Por tudo isso, quero colocar em prática como se fosse alguém de verdade. É assim que vou aproveitando os personagens que chegam até as minhas mãos. Não recebo muitos convites. Se for ficar escolhendo o que vou fazer, acabo não fazendo nada. A Hora da Estrela foi assim, me levou ao topo. E agora, como vou descer ou subir desse negócio? Essa é uma pergunta que ficou para mim mesma. Como vou chegar até lá novamente?
Qual o segredo para seguir em diante, então?
Superando as dificuldades, resistindo sempre. Aproveito toda oportunidade que me é oferecida. Quero estar cercada por cineastas novos, gente que está começando. E sigo exigindo de mim. Praticar, ler, questionar. Cada novo personagem é um recomeço, sempre começando do zero. É muito difícil. Quando você faz uma personagem que nasceu, tem vida e as pessoas se identificam com ele, a sensação é muito boa, mas como será com o próximo? Tenho que descer tudo de novo, e partir para um novo aprendizado. É sempre diferente, embora seja mais uma vez a Marcélia representando todas aquelas figuras e situações. Às vezes em vida ou em ficção. Mas é muito lindo. Os momentos difíceis que passei na minha vida contribuíram, bastante, para poder sentir e respeitar, a mim mesma e ao outro. Acho que escolhi, desde criança, a melhor profissão. Não consigo me ver fazendo nenhuma outra coisa. Vou seguir fazendo muitas personagens, mas com vivências diferentes.
O Papo de Cinema é convidado oficial do 26o Festival de Cinema de Vitória
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