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Realizar um festival de cinema certamente não é uma tarefa simples. Especialmente no contexto atual de um país desgovernado por um presidente que já fez inúmeros ataques à cultura, deixando muito claro que sua plataforma não prevê qualquer incentivo e/ou fomento ao segmento. Portanto, é duplamente louvável o esforço de pessoas como Raildon Lucena, diretor do Curta Caicó, no sentido de continuar resistindo. No caso do evento que acontece na cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte, isso também significa aumentar a democratização do acesso, visto que muitas atividades acabam se concentrando nos centros urbanos. Mas, o Curta Caicó, cuja quinta edição acontece de 03 a 08 de outubro de modo presencial e online (sim, os filmes estão disponíveis na plataforma de streaming do evento), cumpre essa função que deve ser elogiada pela qualidade da curadoria, e, principalmente, pela preocupação com a inclusão da população do sertão do Seridó no circuito das exibições e das discussões em torno do cinema brasileiro. Para saber um pouco mais sobre os bastidores do 5º Curta Caicó, conversamos remotamente com  Raildon Lucena que, gentilmente, tirou um tempinho em meio às atividades para este Papo de Cinema. Confira.

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Quais foram os principais desafios para realizar o 5º Curta Caicó?
Todo projeto tem as suas características. Fizemos as duas primeiras edições no formato presencial com pouquíssimos recursos. A ideia era posicionar o evento. E logo começou a dar resultado, inclusive porque aqui na nossa região do Seridó não havia um festival de cinema. Depois, fizemos duas edições online. Numa delas montamos um drive-in e na outra começamos a levar as programações para as escolas. Aí já descentralizamos as coisas. O evento deixou de ser apenas num espaço, um centro cultural, e fomos conquistando lugares. Atualmente existimos de modo híbrido. O grande desafio é fazer com que todas as atividades aconteçam simultaneamente. O online até que é tranquilo, pois temos um streaming próprio. Já o presencial exige um esforço intenso, inclusive porque temos atividades em várias universidades, com as quais contamos em termos de mobilização própria. O resultado tem sido muito bom. E esta é a primeira vez que estamos fazendo em bairros periféricos e em comunidades rurais. Temos uma preocupação grande a respeito de como atingimos o nosso público. Só a internet não resolve. Precisamos utilizar mídia de TV e carros de som, um meio que funciona muito numa cidade como a nossa de 70 mil habitantes. Então, o desafio é ter estrutura para fazer tantas atividades ao mesmo tempo e ainda pensar na formação de público.

E foi difícil conseguir patrocínios, ou seja, viabilizar o evento financeiramente?
Fizemos as duas primeiras edições na raça. A partir da terceira edição começamos a captar recursos por meio de uma lei estadual aqui do Rio Grande do Norte. E isso certamente nos deu um fôlego enorme. Infelizmente, não temos um edital específico para a realização de festivais de cinema. É aquela velha conversa que você já deve ter ouvido muito: precisamos convencer os patrocinadores da importância do evento e assim conseguir fechar as cotas. Nessa quinta edição, temos um evento muito maior e, mesmo assim, tivemos de cortar mais da metade do que tínhamos pensado em função de questão financeira. Mesmo assim, temos quatro patrocinadores e mais o apoio fundamental do SESC. Estamos super satisfeitos com o resultado, pois chegamos a públicos diversos e, posso dizer, tem se falado muito do Curta Caicó na região e as atividades estão bem movimentadas.

Você já consegue perceber de modo claro uma mudança no panorama local de cinema em virtude da existência do Curta Caicó?
O audiovisual do Rio Grande do Norte tradicionalmente se concentrou no litoral do estado. Festivais como a Mostra de Gostoso e outros em Natal, principalmente. O interior estava realmente carente de atividades voltadas para o audiovisual. Então, o Curta Caicó surgiu como um grito. O pessoal de Mossoró, cidade vizinha e maior, que estava com suas atividades audiovisuais um pouco paradas, entrou em contato e disse que éramos muito atrevidos. Tenho dois pontos a destacar. O primeiro deles é a influência na região. Caicó é considerada um polo de comércio e do desenvolvimento da região. A existência do Curta Caicó fez com que várias cidades vizinhas tivessem interesse pelo assunto. Na primeira edição, tivemos um filme da nossa região (que engloba cerca de 25 cidades). Nessa edição, já contamos com 35 produções da região, tanto que criamos uma mostra exclusiva para elas. Contamos, inclusive, com atividades em outros municípios. Várias localidades próximas criaram seus festivais de cinema a partir desse movimento. O segundo ponto a destacar é que a rede dos festivais do interior do Nordeste é muito forte. Temos o Curta Taquary, o Curta na Serra, Curta Coremas, Cinema com Farinha, entre outros. Participamos uns dos festivais dos outros. Esse circuito do interior é um epicentro da produção audiovisual que precisa ganhar visibilidade.

“O interior estava realmente carente de atividades voltadas para o audiovisual. Então, o Curta Caicó surgiu como um grito”.

E, por enquanto, qual o balanço que você faz dessa quinta edição?
É um sucesso. Para você ter uma ideia, nosso Instagram chegou a 170 mil interações num mês. Nosso streaming está nas 6600 pessoas cadastradas. Obviamente, em 2020 a adesão ao online foi maior, pois estávamos todos conferindo o evento online. Mas, considero que o atual resultado é muito positivo. Quanto à formação de público, acredito que o grande lance seja chegar às comunidades. Fomos à zona rural, onde projetamos os filmes da mostra Nordeste. E foi realmente uma coisa de cinema. O pessoal vendo os filmes, se identificando com as histórias e a população demonstrando a alegria de ser contemplada. Fomos também para o bairro Frei Damião, uma periferia bastante pobre da região, e projetamos num campinho de futebol. A adesão está muito bacana. O festival está cumprindo a sua missão de fomentar o audiovisual no interior do Nordeste, atuando na formação de público. Sempre levantamos a bandeira de transformar o Seridó num polo de produção audiovisual. É uma missão à qual estamos juntando forças. Nossa região é fortemente empreendedora. E o audiovisual chega para contribuir, fortalecendo a cadeia da economia criativa. E aí você pode perguntar: Raildon, qual era a relação de Caicó com o audiovisual no passado?

Exatamente (risos): Raildon, qual era a relação de Caicó com o audiovisual no passado?
Há 30 anos tivemos a última sala de cinema aberta em Caicó. Ela voltou recentemente. Nas décadas de 1960/70/80 tínhamos quatro salas de cinema, cujos nomes batizam mostras do Curta Caicó. O Rio Branco era a maior tela de cinema do Nordeste. E o primeiro filme de ficção no qual o Walter Carvalho trabalhou, o Boi de Prata (1980), foi rodado em Caicó. Então, no passado a nossa cidade tinha uma relação muito forte com o cinema. A minha geração já é a das locadoras de vídeo. O Curta Caicó nasceu justamente para resgatar essa tradição e ajudar a florescer o cinema no sertão. Inclusive estou finalizando um curta que aborda essa relação de Caicó com o cinema e ele se chama provisoriamente Cheiro de Cinema.

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Para terminar, você acha que a partir de agora o suporte do streaming é algo incontornável para eventos como o Curta Caicó?
Acredito que sim. O streaming ajuda muito na divulgação do festival. Neste ano não conseguimos fazer debates online, porque faltou “perna”. Mas, em outros anos conseguimos estabelecer diálogo com pessoas do audiovisual que, infelizmente, ainda não temos condições de trazer a Caicó. Como estamos mostrando filmes da nossa região, também, o streaming acaba sendo uma vitrine importante. Claro que tudo precisa estar tecnicamente funcionando. As pessoas que não estão aqui podem conhecer os nossos filmes. O streaming é importante para posicionar o nosso evento no mapa dos festivais nacionais. O Curta Caicó recebe mais de 500 inscrições desde a sua segunda edição, número que nos coloca numa posição de destaque. Neste ano foram mais de 800. Isso nos situa no grupo dos 20% que mais recebem inscrições no Brasil. Aliás, tenho de agradecer muito a toda a equipe que faz o evento acontecer.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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