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Desde 17 de setembro, o espectador brasileiro pode assistir nas principais plataformas de streaming ao drama que representou a Jordânia na disputa pelo Oscar 2021 de melhor filme internacional: A 200 Metros (2020), de Ameen Nayfeh. Na história, Mustafa (Ali Suliman) é um homem palestino vivendo na Cisjordânia, próximo à fronteira com Israel. A esposa e o filho moram do outro lado do muro, embora Mustafa os enxergue de dentro de seu apartamento. Ele costuma ir e voltar ao país vizinho diariamente para trabalhar na construção civil.
Quando Mustafa descobre que o filho sofreu um acidente e se encontra num hospital israelense, ele tenta atravessar um posto de controle, mas um detalhe burocrático o impede de entrar em Israel. Desesperado, busca maneiras ilegais de chegar ao destino, com a ajuda de atravessadores. Ao longo de um dia inteiro, divide espaço numa van com outras pessoas, incluindo um homem viajando rumo a um casamento e uma cineasta alemã preparando um filme sobre os conflitos entre os dois países. Aos poucos, o drama se transforma num suspense. Nós conversamos com o cineasta sobre o longa-metragem, vencedor do prêmio do público BNL no Festival de Veneza 2020:

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A produtora May Odeh e o diretor Ameen Nayfeh. Foto: El Gouna Film Festival / AFP

É frequente a situação de Mustafa, precisando atravessar a fronteira a trabalho diariamente?
No que diz respeito aos trabalhadores, pelo menos 80 mil pessoas atravessam a fronteira todos os dias para Israel. A barreira que você vê no filme recebe dez mil pessoas diariamente, às vezes até mais.

Você filmou em postos de controle reais?
Quando comecei a escrever o roteiro, meu produtor me dizia: “Ameen, não se preocupa. Escreve o que vier à mente, e depois encontramos uma solução”. Eu pensei que teríamos orçamento suficiente para construir estes espaços para as filmagens, mas não foi o caso. Tivemos que lidar com o que estava disponível: os postos de controle reais estavam logo ali, então por que não usá-los? Filmamos em locações reais. Para os interiores, conseguimos criar cenários menores. Mas sempre filmamos nos locais reais, o que era difícil, porque não tínhamos permissão de filmagem. Aquela área estava sob controle israelense, então não havia possibilidade de pedir “Podemos fazer um filme sobre o muro?”. Tivemos que formar uma equipe pequena, e passar pouco tempo nestes locais para não prestarem atenção em nós. Foi um verdadeiro cinema de guerrilha.

O projeto se tornou mais difícil de viabilizar em função do tema?
Nós tentamos o financiamento de todas as maneiras possíveis. Nós nos inscrevemos em diversos fundos e editais. Quando a resposta era negativa, perguntávamos o motivo da recusa, mas nunca vinha uma resposta. Talvez tenha sido em função do tema mesmo, porque é algo muito sensível. Afinal, levei sete anos para reunir as condições necessárias, e imagino que a escolha da temática tenha contribuído a essa demora.

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Por que escolheu esta história para seu primeiro longa-metragem?
Porque esta é a minha história de vida! Não sou pai, e não tenho esposa ou filhos do outro lado do muro, mas tenho uma família grande do lado de lá. Minha mãe vem de uma cidade palestina do lado israelense. Eu me lembro de quando não havia o muro: eu simplesmente pegava um táxi e ia para a casa dos meus avós. Quando ergueram o muro, não conseguia mais visitá-los com frequência, o que foi muito doloroso. Eles estavam logo ali, bem perto. Conforme crescia, escutei muitas histórias parecidas com a minha. Durante os estudos de cinema, a ideia deste filme veio muito naturalmente: sabia que esse seria o meu primeiro longa-metragem.

Desde que criaram o muro, como a situação na fronteira se desenvolveu?
Infelizmente, tem piorado bastante. A segregação se tornou mais intensa, e os postos de controle se multiplicaram. Estamos indo para uma direção ainda pior, me parece.

Por que incluiu nesta viagem o ponto de vista de uma mulher europeia?
Quando comecei a escrever o roteiro, surgiu a ideia de ter uma cineasta estrangeira na viagem. Comecei a pensar nela como uma ferramenta de navegação: ela faria perguntas que um palestino não faria. Então, conheci duas pessoas: um palestino e um alemão, que estavam fazendo um filme sobre o contrabando na fronteira. Eles tinham uma história semelhante àquela do meu filme. Sempre fui bastante teimoso neste aspecto: queria que todos os personagens viessem de histórias reais. Não queria inventar nada. Mas este episódio tinha acontecido de fato, então decidi aproveitá-lo e inseri-lo na história. Quis ir além de oferecer ao espectador estrangeiro um personagem com o qual pudesse se identificar: Anne traz muitas camadas à narrativa pela maneira como o noivo e Mustafa reagem a ela, de acordo com a informação que possuem sobre seu passado: ela é alemã? É palestina, israelense? Foi muito interessante trabalhar com isso.

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Você trabalha com uma câmera na mão dentro do carro. Eu me senti como um passageiro a mais.
Alguns espectadores palestinos me disseram que o filme parecia um documentário. Para mim, isso é um elogio. Eu queria refletir a vida real. Quando encontrei minha diretora de fotografia, Elin Kirschfink, expliquei minhas intenções e referências, incluindo Ajami (2009). Ela adorou esta referência. Continuamos discutindo a melhor maneira de abordar as cenas, e chegamos a este estilo.

Como preparou Ali Suliman para o papel?
Eu não fiz preparação nenhuma, ele já veio pronto! Passamos apenas três, quatro dias juntos. Ele veio ao meu apartamento e discutimos cena a cena. Ali tem mais experiência do que eu, por seu meu primeiro filme, enquanto ele esteve em várias produções grandes. Ele me deu diversas sugestões de diálogos e cenas, mesmo para outros personagens. Ele se implicou bastante e ajudou a melhorar a história. Ao final, Ali parecia um irmão mais velho cuidando de mim; tive uma grande sorte de poder contar com ele. Quando conversamos pela primeira vez ao telefone, tivemos uma conversa longa, e eu disse que escrevi o papel com ele em mente. Ali gostou bastante disso. Desde então, ele venceu cinco prêmios de melhor ator por este papel.

A 200 Metros representou a Jordânia na corrida ao Oscar. Acredita que isso abrirá novas portas para seus próximos projetos?
Quando fiz o filme, não tinha expectativas específicas. Conforme ele circulava em festivais, e tinha uma boa resposta, as pessoas começaram a me perguntar: “E o Oscar?”, mas eu nem estava pensando nisso. No final, não tínhamos dinheiro suficiente para fazer campanha do filme com os membros da Academia. Não sei o que teria acontecido em outras condições. Neste período, recebi ligações de alguns produtores em Los Angeles, interessados no meu trabalho. Fiquei lisonjeado, claro, mas não tenho planos de ir aos Estados Unidos. Eu estudei cinema para contar as histórias daqui. Se eu dia eu esgotar todas as nossas histórias, quem sabe eu pense nessa possibilidade. 

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Quais foram as reações dos dois lados da fronteira?
O filme foi exibido tanto para os palestinos em solo palestino quanto para aqueles em cidades árabes de Israel. Ainda não o exibimos para o público israelense, exceto em festivais judeus nos Estados Unidos e na Alemanha. Nos dois lados, tive respostas muito positivas, porque não defendo nenhum lado em particular, apenas mostro a realidade como ela é. Não inventei locações, personagens: este é o muro real, no local real. Isso me coloca num espaço neutro para os dois públicos. Muitos palestinos viram a cena quando os personagens chegam ao muro e começam a escalá-lo, e me perguntaram: “Isso é verdadeiro?”. É verdade, claro! Não quero mostrar os palestinos como vítimas traumatizadas, e sim revelar o contexto mais amplo. Estamos numa situação difícil, mas existem outros aspectos, incluindo palestinos que complicam as relações entre os países. Não são apenas os israelenses que complicam as coisas.

A sinopse sobre o filho no hospital pode sugerir algo bastante dramático, mas você evita o melodrama.
Na verdade, o roteiro era ainda mais dramático, mas tive um ótimo encontro com alguém que me disse: “Sua história está na relação familiar separada, nada a mais. Você não precisa de nada além disso”. Eu tinha escrito algumas cenas de violência nos postos de controle, mas é verdade, eu não precisava daquilo. Foi uma revelação para mim: esta é uma história de superação, e ponto final. Algumas pessoas me sugeriram mostrar o que estava acontecendo do outro lado, mas se Mustafa não consegue enxergar o que ocorre ali, não também não vemos. Este era o meu direcionamento.

Como viveu a experiência de exibir seu filme tanto nos cinemas quanto online, durante a pandemia?
Alguns amigos assistiram ao filme online, e depois puderam ver na tela grande. Segundo eles, foram duas experiências totalmente diferentes. Na tela grande, ficaram emocionados, choraram. Na tela pequena, vendo sozinho, com certeza o impacto é bem diferente. A primeira vez que assisti ao resultado final, na tela do cinema, foi durante a estreia no Festival de Veneza, porque a finalização tinha sido feita inteiramente online via Zoom. Eu assisti ao filme na condição de espectador, junto do público do festival. Eu ficava atento a alguns elementos de som, e detalhes que pretendia corrigir depois. Foi um processo muito difícil. Sei que cometi alguns erros, até pelas reações que recebi. Vou levar este aprendizado para meus próximos filmes.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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