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A Bruxas do Oriente :: “A equação autonomia feminina + esporte de alto nível precisava ser discutida”, explica o diretor Julien Faraut

Publicado por
Bruno Carmelo

Na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo 2021, o diretor francês Julien Faraut apresenta o documentário As Bruxas do Oriente (2021), uma reflexão sobre a equipe de vôlei com o maior número de vitórias consecutivas na história: a seleção japonesa feminina entre as décadas de 1950 e 1960, que atingiu 258 conquistas seguidas. O recorde é comemorado com apreensão, pelas suspeitas de que as atletas tenham participado de treinos abusivos, sem pausa para descansar ou comer.
No filme, o cineasta retoma esta lenda pela perspectiva das próprias jogadoras, hoje na casa dos 70 e 80 anos de idade. Elas relembram as vitórias enquanto minimizam as polêmicas de abuso. Em conversa com o Papo de Cinema, Faraut explica a importância de diferenciar o esforço voluntário das grandes jogadoras da percepção paternalista de fragilidade feminina:

O cineasta Julien Faraut no Festival de Berlim. Foto: Berlinale

O filme indica que as jogadoras falam raramente sobre esta época. Por quê? De que maneira obteve a confiança delas?
Quis colocar esta informação no início do filme porque o treinador costumava falar muito em nome da equipe, e a segunda porta-voz era a capitã, também falecida. As outras não tinham a oportunidade de se expressar. Achava frustrante que as demais não falassem por si mesmas, e percebi isso durante o processo de pesquisa. Notei a incompreensão da imprensa ocidental, especialmente norte-americana, sobre elas, e por isso quis encontrar as demais jogadoras pessoalmente. Trabalhei com uma tradutora francesa, Catherine Cadou, conhecida como tradutora dos diretores japoneses que vinham à França, e das equipes francesas viajando ao Japão. Ela tem exatamente a mesma idade da mais jovem das bruxas: 74 anos. Ela era a pessoa mais adequada para entrar em contato com as ex-atletas e assegurá-las sobre nossas boas intenções quanto ao filme. Catherine foi bastante persuasiva. As jogadoras estão acostumadas a responderem às perguntas da imprensa local, especialmente da rede NHK, mas ficaram surpresas de encontrar interesse num francês. Mas ficaram interessadas, apesar de sua timidez e humildade. O fato de serem japonesas, e pertencerem a uma geração que não costumava se expor, é importante nesse caso. Mas elas foram campeãs, e acredito que tenham ficado felizes de se verem ao centro de um documentário que as homenageia. Por isso, havia também um senso de orgulho. 

De que maneira o filme reflete a evolução do esporte? O vôlei se transformou bastante desde então.
Em relação à atualidade, o que me motivava a fazer o filme era a percepção do público médio quanto às atletas femininas de alto nível. Existe um fator perverso e paradoxal, decorrente das histórias sórdidas que infelizmente escutamos nos jornais, a respeito de atletas femininas que declaram ter enfrentado abuso moral, e às vezes sexual, por parte dos treinadores. Fico feliz que a palavra se liberte, que as vítimas possam se expressar e os responsáveis sejam julgados. Mas isso também cria um imaginário sobre mulheres vítimas. No caso de As Bruxas do Oriente, a imprensa ocidental ficou chocada ao descobrir os treinamentos das jogadoras, e considerou que eram vítima de maus-tratos da parte de um homem malvado, que foi chamado de “treinador demoníaco”. Por serem mulheres e japonesas, eram vistas automaticamente como vítimas. Ora, esses jornalistas e pesquisadores nunca pararam para pensar que talvez estas mulheres tenham decidido, por conta própria, se tornar atletas de alto nível.
Nesta posição, é preciso treinar muito mais do que o público está acostumado a ver. Os ocidentais pensavam falar em nome da dignidade feminina, acreditando defender as jogadoras contra o treinador perverso, mas no fundo, faziam o contrário, negando a elas a oportunidade de fazerem esporte de alto nível. Elas foram pioneiras: foi a época em que se definiram as novas configurações do esporte de alto nível, treinando diversas horas por dia. Os esporte deixa de ser mero passatempo. Isso muda muito em relação a nosso olhar contemporâneo. É claro que as mulheres avançaram em sua autonomia desde então, mas é preciso pensar na questão do excesso. O que perturbou os jornalistas da época foi ver jogadoras treinando sem moderação. Na França, as mulheres têm grande liberdade de ação, e podem fazer quase tudo como os homens, mas não têm direito ao excesso.

Espera-se que mulheres sejam moderadas. Isso se aplica ao esporte.

Elas podem beber álcool como os homens, mas não são toleradas quando ficam bêbadas como os homens. Um homem bêbado parece algo normal, algo que acontece, mas isso é visto como indigno às mulheres. Espera-se que mulheres sejam moderadas.
Isso se aplica ao esporte: nos anos 1960, esperava-se que mulheres treinassem com moderação, sem ganhar músculos demais. A prioridade devia permanecer no ato de dar à luz, e por isso, precisariam conservar sua força vital. As bruxas do oriente passam a fazer tudo em excesso: elas treinam durante muitas horas, e isso dialoga bem com o presente. Hoje, o esporte de alto nível é muito exigente, e é lógico que existem casos abusivos – penso em Simone Biles, e na pressão enorme que ela sofreu. Espero que ela possa se reconstruir, e seu treinador seja julgado e punido. Mas o público desconhece o esporte de alto nível. No final de uma prova de 800 metros no atletismo, diversos atletas vomitam. Se eu colocar uma câmera nesse momento, filmando o jogador vomitando ou desmaiando, vão dizer que é um absurdo, mas se trata apenas das exigências do treino. A equação autonomia feminina + esporte de alto nível precisava ser discutida. Sim, as mulheres têm o direito de se machucar e se forçar tanto quanto os homens, na busca de serem as melhores do mundo em sua modalidade.

Onde se encontra então o limite entre as necessidades do treino e a prática abusiva?
É o mesmo limite para os casos de violência contra a mulher: a adesão. Enquanto dois adultos estiverem de acordo, não há limites, senão entramos na moralidade. O mesmo vale para a sexualidade: a moral cristã pode dizer que dois homens não podem fazer sexo, ou não se pode fazer sexo entre várias pessoas, mas se todos estiverem de acordo, não há problemas. Caso sejam forçadas, aí se encontra o problema. No caso das jogadoras, elas tinham vontade de ser as melhores. Não se força uma equipe a se tornar campeã olímpica. No filme, vemos algumas titulares que preferiram abandonar a equipe, sendo substituídas pelas reservas. Outras quiseram parar, mas não encontraram meio de fazê-lo, porque quando se pratica o esporte nesse nível, ou quando se é músico ou dançarino nesse nível, o trabalho será longo e cansativo, mas a recompensa dificulta parar. Por isso, o limite é individual. Caso as jogadoras fossem obrigadas, o limite teria sido ultrapassado.
O mais interessante nesta história é adotar um olhar de antropólogo. O Japão é um país particular, repleto de costumes específicos. O esporte de alto nível faz parte de um grupo seleto, relativo a uma psique particular. No Japão, existe um forte senso de hierarquia – não digo que isso seja bom nem ruim. Percebe-se essa relação entre as titulares e reservas. As reservas aceitam sua posição com facilidade, ao contrário de outros países, porque as japonesas compreendem o valor de sua função. Na França, seria mais complicado: as reservas acham injusto ficar no banco, porque queriam ser titulares. No Japão, a disciplina impera. O treinador toma as decisões, e elas aceitam porque no modo de funcionamento neste país, a hierarquia não é questionada.

Enquanto dois adultos estiverem de acordo, não há limites, senão entramos na moralidade.

Quanto aos treinamentos, a cultura de treinos e superação de si é muito forte por lá. Isso não se limita ao esporte: vai às artes, à culinária. Dedica-se por completo, não apenas por passatempo. Esse é um traço característico dos japoneses. Os estudiosos do esporte japonês apontam as origens militares – de fato, a prática por lá lembra a estrutura do exército e dos samurais. O treinamento do beisebol e do judô são duríssimos, por exemplo. Por isso, não faço julgamentos de valor a respeito. É preciso reconhecer que existe um prazer do esforço. O fato de ultrapassar seus limites gera satisfação. Muitas jogadoras tinham uma preparação física excepcional. O corpo se tornava potente, eficaz, disposto. Uma das jogadoras me disse que, quando parou de jogar, não entendia quando as colegas reclamavam do cansaço, do frio, da fome, porque tudo lhe parecia fácil. Mesmo hoje, idosas, elas possuem uma condição física invejável. Se tivessem sido traumatizadas, dificilmente eu conseguiria fazer o filme hoje. Quando eu as vejo ainda jogando vôlei, e frequentando a academia, percebo a força de seus corpos e de suas mentes.

Você trabalha com uma edição ágil, misturando arquivos dos jogos com desenhos e mangás. Por que escolheu esse estilo?
Eu quase não escrevo um roteiro prévio, prefiro avançar passo a passo. Começo a montagem enquanto ainda não encontrei todas as minhas imagens. Eu sabia que queria imagens de arquivo dos jogos, do treinamento e do trabalho delas na usina. Em seguida, sabia que elas precisariam contar a história por si mesmas, eu não poderia assumir essa responsabilidade. Era preciso escutá-las dizer: “Tive confiança no treinador e o apoiei até o fim”. Uma delas inclusive me disse: “Não seria descansando que a gente ganharia o campeonato mundial”. Sabia que as imagens atuais se alternariam com o material de arquivo. Os desenhos animados integraram esta configuração rapidamente, a partir do momento em que os encontrei junto aos arquivos. Fiquei chocado com a intensidade dos treinos, o que me lembrou o desenho Jane et Serge, que eu via quando era criança na França. Na verdade, é um desenho japonês, de título Attacker You.
Descobri que a história real das bruxas inspirou o mangá Attack Nº1, que em 1969 se tornou o anime bastante popular. Assim surgiram cerca de quinze mangás sobre o voleibol, quase sempre feminino. Essas histórias mostram o impacto das bruxas do oriente no Japão. Na França, todo mundo conhece Jane et Serge, mas quase ninguém sabe que isso está ligado a uma história real. Fiquei pensando em como integrar as imagens. Dois aspectos foram importantes: primeiro, queria que a montagem evocasse a confusão entre realidade e ficção. Assim, evocaria a história do Japão, quando a sociedade inteira trabalhou na reconstrução nacional pós-guerra, incluindo as jogadoras na indústria do algodão, uma das mais importantes para os japoneses. O esforço delas deve ser colocado no contexto mais amplo de esforço coletivo de reconstrução do país, quando todos trabalhavam muito duramente. Isso colocava em perspectiva os treinamentos delas. Por isso, precisava combinar estes elementos na montagem.

O esforço delas deve ser colocado no contexto mais amplo de esforço coletivo de
reconstrução do país, quando todos trabalhavam muito duramente.

Muitos jogadores e jogadoras atuais começaram a jogar vôlei porque assistiam aos desenhos animados. Uma das melhores jogadoras do mundo, Francesca Piccinini, declarou aos italianos que começou o vôlei porque queria se parecer com Mimi, personagem do desenho animado japonês. Ou seja, o referencial dela era uma personagem fictícia, ao invés de uma jogadora real. Por isso, queria que essa confusão estivesse presente. Além disso, preciso lembrar que fazer um filme implica em lidar com problemas técnicos, porque é algo artesanal. Não dá para fazer tudo o que queremos, nem sempre possuímos as imagens desejadas. Queria contar a história de duas finais entre o Japão e a URSS: a final do Campeonato do Mundo de 1962 e a final dos Jogos Olímpicos de 1964.
Sobre 1962, encontrei no INSEP, onde trabalho, um filme soviético onde o trecho referente à final durava três ou quatro minutos. Mas a edição era estranha, não dava para compreender bem alguns pontos por causa dos cortes. Para os Jogos Olímpicos, encontrei quatro minutos inicialmente, e depois consegui alguns trechos a mais. Percebi que Attack Nº1, o desenho animado, é composto por 104 episódios. Os episódios 103 e 104 cobrem exclusivamente uma partida entre Japão e URSS. Cada episódio tem cerca de 24 minutos, então de repente, encontrei mais 48 minutos de material, entre aspas, da partida. Quis preencher as lacunas existentes nos arquivos com o desenho animado. Utilizei isso principalmente na final de 1962. Essa relação tinha sentido diegético, mostrando em que medida a realidade e o desenho animado se pareciam.

Por que quis encerrar o filme na vitória dos Jogos Olímpicos, ao invés de continuar acompanhando as bruxas até a primeira derrota?
Essa escolha me pareceu natural. Historicamente, a reconstrução do Japão encontrou seu ápice nos Jogos Olímpicos, quando o país ganhou grande atenção internacionalmente no plano geopolítico. Eles reconstruíram uma economia arrasada, e um povo desesperançado. Os jogos se tornaram uma meta importante. Queria que o filme ficasse pronto a tempo dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Precisava encontrar um momento fatídico para encerrar este percurso, e a medalha de ouro correspondeu ao ponto glorioso que convinha para o término. Além disso, tinha um material de arquivo excelente em scope, e não dava para ir além disso. Esse foi o momento mais importante da vida das jogadoras. Por isso, me pareceu natural encerrar neste instante.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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