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A Cássia Eller de Paulo Henrique Fontenelle

Publicado por
Roberto Cunha

O documentário Cássia Eller (2014) fez barulho por onde passou, sendo coerente com a sua “protagonista”, recebendo aplausos empolgados no Festival do Rio e, de quebra, conquistando prêmios, como aconteceu na Mostra São Paulo 2014, entre outros. Dirigido pelo carioca Paulo Henrique Fontenelle, premiado por outros documentários como Loki: Arnaldo Baptista (2008) e Dossiê Jango (2013), Cássia Eller estreou na última quinta-feira, 29 de janeiro, e tem fortes chances de conquistar o coração dos fãs (ou não) da cantora, que provocou sensações e abalou o cenário musical de sua época, transitando com singular facilidade entre variados gêneros, sem nunca perder a rebeldia. O Papo de Cinema entrevistou o cineasta e você pode conferir agora como foi. Boa leitura! ;)

 

Aplaudido no Rio, premiado em Sampa, Cássia Eller tem depoimentos que – certamente – vão provocar um nó na garganta de muita gente. Algum em especial marcou mais você, ali, por trás das câmeras? E depois, com ele já pronto?
Ele é todo recheado de depoimentos marcantes. Todo mundo falava da Cássia com muito carinho e muita saudades. Era muito difícil não se emocionar em certas situações. O depoimento da Eugênia foi bem marcante, foi o primeiro e falando de todos os assuntos com muita beleza, tranquilidade… O depoimento da Dona Nanci, mãe da Cássia, também foi muito especial e tocante.

Não deve ter sido fácil…
Mas talvez o mais emocionante tenha sido o do Nando Reis, que abriu a casa para nós e passou duas horas lembrando com muita emoção os momentos que viveu com a amiga. Ele nos mostrou cartas que escreveu para ela, diários, e ainda tocou All Star numa versão muito emocionante.

 

Curioso você dizer isso agora, porque na sessão da Mostra de São Paulo tive essa exata impressão. Existia ali um sentimento forte mesmo, diferente…
No final, quando olhei para trás, a equipe inteira estava chorando emocionada.

 

Nossa! Imagino como deve ter sido… O filme tem um roteiro redondo e as imagens trabalham em total sintonia para contar a “história”. Ele foi seguido a risca ou na hora da montagem ele foi se configurando? Quanto tempo levou nesse processo de quatro anos da produção?
A montagem é o momento mais esperado por mim, quando planejo um filme. É a hora que a gente pode criar, descobrir novos caminhos, ver o que funciona ou não. É um trabalho solitário, quase como escrever um livro. Cássia Eller foi um processo bem complexo. Tínhamos 400 horas de material para transformar em duas horas, no máximo. Achei que a forma linear seria a mais eficaz para trazer a informação e a emoção para o público, e ajudaria a compreender melhor essa figura fascinante que foi a Cássia. Foram mais ou menos uns quatro meses de montagem.

Zélia Duncan é uma das entrevistadas e está em Loki também. Em Cássia Eller, ela fala com uma precisão incrível, muito serena…
Ela já virou a minha musa. (risos) Convivi com ela em Londres, na época das filmagens do Loki, depois fiz alguns DVDs ou programas de TV, com ela participando. Nesse filme, mais do que nunca, ela não poderia faltar, porque conviveu com a Cássia desde a juventude de Brasília e começaram suas carreiras juntas, fazendo parte do elenco da peça do Oswaldo Montenegro. Ela é uma pessoa muito inteligente e dá depoimentos muito bonitos, que geram muita reflexão.

 

Como foi esse processo das entrevistas, existia algo já pensado, era livre, você ligou a câmera e deixou rolar o papo?
Foi algo muito bem planejado antes de começarmos as filmagens. Procurei basicamente todas as pessoas que conviveram com Cássia, desde familiares, amigos da juventude, jornalistas e empresários, até parceiros musicais e músicos que tocaram com ela. Fizemos todas as entrevistas em apenas três semanas. Foram quase 40, apesar de muita gente acabar saindo no corte final. Mas mesmo com todo esse planejamento, sempre aconteciam surpresas e um entrevistado citava alguém que tinha sido importante, que não estava na nossa pesquisa, e nós partíamos em busca dessa pessoa. Para todas as entrevistas existia uma pauta planejada, mas de acordo com a as respostas, novas perguntas iam surgindo e a entrevista seguia um rumo naturalmente.

 

Teve algum depoimento que foi assim meio sufoco de se conseguir ou ser realizado?
Todas foram muito tranquilas. Todo mundo estava disposto a falar e recordar da Cássia com muito carinho e saudade. No meu primeiro encontro com a Eugênia, ela deixou bem claro que gostaria que o filme apresentasse a Cássia real, que abordasse todos os temas com total liberdade e sem nenhum tipo de censura. Isso nos deu uma liberdade muito grande de tocar em todos os temas que queríamos. A única coisa que tenho como regra é que esses temas devem ser tratados sempre com respeito que a Cássia e qualquer pessoa merece.

O mistério da terceira pessoa no triângulo seria um exemplo disso?
A terceira pessoa não tinha porque de desenvolver muito o tema. E a identidade dela não era algo relevante para a história. O importante era apenas mostrar o momento conturbado que a Cássia vivia naquele momento, que levou ela a se isolar junto com a banda no famoso sítio de Teresópolis, que foi fundamental para unir ainda mais o grupo, e definitivo para o sucesso do Acústico.

 

O documentário tem o poder de seduzir (quem sabe converter?) até mesmo aquela pessoa que não era muito chegada no trabalho da artista. Isso foi pensado previamente ou aconteceu?
Minha intenção era mostrar um outro lado da Cássia, que pouca gente conheceu. Eu mesmo não sabia o que ia encontrar quando comecei o projeto. Na medida em que ia fazendo o filme, fui descobrindo nas conversas, entrevistas e imagens de arquivo, essa figura fantástica. Passei a admirá-la muito mais do que antes. Ela era uma pessoa muito simples, humilde, sincera, honesta, carinhosa e todos esses lados ficaram por muito tempo escondidos por trás daquela imagem da roqueira rebelde. Acho que pessoas que vão ao cinema matar saudades da artista e das músicas, vão conseguir fazer isso, mas irão se surpreender ainda mais com esse lado da Cássia, que é tão inspirador e revolucionário quanto o da cantora.

 

A opção por um narrador existia desde o começo? Em quantos nomes você pensou até chegar em Malu Mader?
Desde que vi pela primeira vez aquela carta da Cassia, em que ela fala da relação dela com a música, eu sabia que ela teria que ser o início e o final do filme. É um texto lindo que ela escreveu na juventude e que resume muito bem o amor que tinha pela arte dela. A grande preocupação era encontrar a pessoa perfeita para interpretá-la. Não me lembro quantas pessoas pensamos para essa missão, mas a Malu foi um grande achado que surgiu faltando poucos dias para o filme ficar pronto. Hoje não vejo outra pessoa que poderia ter feito isso de forma tão bonita como ela.

A escolha por uma pessoa sem qualquer ligação com uma postura rebelde chegou a te preocupar?
Durante muito tempo fiquei na dúvida de como seria a leitura da carta. Na minha opinião, ou se escolhia alguém com a voz idêntica à da Cássia, ou buscava-se uma outra voz famosa completamente diferente, mas que interpretasse de forma poderosa os escritos. Ficamos muito tempo sem ter a voz perfeita. Foi quando me lembrei da Malu, que conseguia unir as duas coisas. Tinha um pouco daquela voz rouca da Cássia, mas ao mesmo tempo era uma voz que soava familiar. E ela tinha um carinho grande pela Cássia, pois tinha tido um breve convívio por conta da sua ligação com os Titãs, e ficou muito emocionada com o convite. No final, ela leu lindamente, com muita emoção. Não podia ter sido outra pessoa.

 

Cássia em vídeos, shows e fotos já eram tesouros, mas os “escritos” soaram como pérolas. Quando você bateu os olhos, veio logo a ideia de usá-los de alguma forma?
Claro. Minha intenção era unir tudo que pudesse ajudar a compreender a Cássia na sua essência. Tínhamos as músicas, as lembranças dos entrevistados, a própria Cássia em entrevistas e em imagens caseiras. Mas esses escritos também revelam muito da alma dela. Não tinha como não usar isso.

 

Seu primeiro longa foi um documentário também do cenário musical, depois veio um com viés político, investigativo…
Meu primeiro curta falava das aventuras do Mauro Shampoo, jogador do Ibis Sport Club de Recife, que entrou no Guiness Book como o pior jogador de futebol de todos os tempos. Depois, veio o Loki, uma história de superação, de amor e resgate. Na sequência veio o Dossiê Jango, praticamente uma investigação policial através da qual demos credibilidade, provas e todos os indícios de que a morte de Jango não foi acidental, além de mostrar os horrores da ditadura e o quanto é importante conhecermos nossa história para não repetirmos erros do passado.

Aí você retorna para a seara da música. É um “palco” que você gosta de subir, qual a sua ligação?
Eu sou viciado em música. Sou beatlemaníaco de carteirinha e respiro música 24 horas por dia. Sempre que tiver a oportunidade de trabalhar com música, seja em DVDs, documentários, ou programas de TV, eu faço. Cássia Eller busca dar uma nova visão sobre essa pessoa tão querida do público, mas que pouca gente conheceu de fato. Uma maneira de passar a limpo a história dela com dignidade, tocando em temas relevantes como a união homoafetiva, o preconceito e a responsabilidade da imprensa. Então, na verdade, busco histórias que tragam reflexão e inspiração. Se a música estiver envolvida no meio, melhor ainda. Mas não pretendo me ater apenas ao universo musical.

 

Em Loki você teve uma espécie de revés ao não poder contar com depoimentos de Rita Lee. Rolou algo parecido com Cássia Eller?
Pois é… No Loki tivemos essa ausência da Rita Lee, que num primeiro momento me deixou preocupado, mas que depois, revendo, acho que deixou o filme mais poético. Independente dela dar entrevista ou não, ela está presente no filme todo e da maneira mais bonita possível: alegre, jovem, linda. É a Rita Lee que ficou na memória do Arnaldo. Nesse ponto, o que era um problema acabou funcionando bem pro filme. Mas no caso da Cássia Eller, não tivemos nada parecido. Todo mundo participou e falou com muita emoção. Até o Wanderson Eller, tio e ex-empresário dela, que raramente deu depoimentos nesses anos todos.

 

Essa é básica, mas não dá para fugir: Como é que pintou o projeto? Fala pra gente aí da ideia, se procurou muita gente, como foi a reação da Iafa Britz (produtora) quando você chegou em cima.
A ideia surgiu no final de 2009, ouvindo um disco da Cássia. Senti vontade de desvendar quem foi essa mulher, que emocionou e influenciou tanta gente, que todo mundo gosta, mas que pouca gente de fato conheceu. Em 2010, fui na (produtora) Migdal me encontrar com a Iafa e a sócia dela, Carol Castro, e elas se apaixonaram pelo projeto de cara. Dez minutos depois já estávamos escrevendo uma mensagem para a Eugênia em busca do primeiro contato. Foi uma bela parceria.

O filme não faz firulas na questão das drogas, sexualidade, “bate” no sensacionalismo e termina revelando quão generosa era aquela figura, digamos, maluca e ao mesmo tempo adorável. Você teve algum tipo de cobrança ou controle por parte dos envolvidos?
Nem um pouco. A Eugênia deu carta branca para eu fazer o filme do jeito que achasse melhor. Ela só foi vê-lo depois de pronto. A Cássia nunca escondeu nada em relação a sexualidade, drogas ou comportamentos. E sempre foi muito sincera e honesta em todas as entrevistas. O filme mostra todos os lados: rebelde, generosa, mãe de família, o furacão dos palcos, a filha, amiga… E é tudo isso junto, que faz dela uma pessoa tão especial e inspiradora.

(Entrevista feita no Rio de Janeiro em 27 de janeiro de 2015)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é publicitário, crítico de cinema e editor-executivo da revista Preview. Membro da ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, filiada a FIPRESCI - Federação Internacional da Crítica Internacional) e da ABRACCINE - Associação Brasileira dos Críticos de Cinema. Enviado especial do Papo de Cinema ao Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 2014.

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