A dupla de realizadores baianos Cláudio Marques e Marília Hughes chamou bastante atenção com o seu longa-metragem de estreia, Depois da Chuva (2013). Não foram poucos os comentários da crítica louvando a linguagem singular por eles empregada para falar de coisas que dizem respeito à história brasileira, no caso, os anos 80 no país, marcados pela transição entre a ditadura civil-militar, que vigorava desde 1964, e o estado democrático. A vontade de entrelaçar dramas pessoais e sintomas e/ou eventos sociais é retomada em A Cidade do Futuro (2018), segundo filme deles, que chega ao âmbito comercial após fazer bonito no circuito dos festivais. Além de abordar a resistência de um trio de jovens à pressão social por conta da instituição de uma família não convencional, Cláudio e Marília conseguem colocar tudo isso numa perspectiva que começa com o desalojamento de pessoas em virtude da construção de uma usina hidrelétrica. Extremamente atenciosos, eles nos atenderam para este Papo de Cinema por telefone. Confira a conversa exclusiva que tivemos com Cláudio Marques e Marília Hughes.
Desde o começo, a relação entre a comunidade formada a partir dos outrora desalojados e os protagonistas se estabeleceu como norteadora para vocês?
Claudio Marques: Pesquisávamos sobre a Hidrelétrica do Sobradinho, no norte da Bahia, criada pelos militares nos anos 70. Por causa dela, mais de 73 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Quatro cidades foram submersas. Na pesquisa, vimos um cinejornal que dava conta tanto da saída dessa gente quanto do alojamento dela no que é hoje a Serra do Ramalho, então chamada de “cidade do futuro”. Quando chegamos lá, entendemos que a realidade era mais ou menos o que imaginávamos, pois a região é situada num cinturão com inúmeros problemas. Todavia, ficamos muito impressionados com a força da juventude que, diferentemente dos pais e avós tirados de suas terras, estava pronta para brigar, a fim de se mostrar como cidadãos de primeira categoria. Lá é um ambiente machista, de extrema homofobia. Percebemos que essa rapaziada lutava contra isso. Ficamos encantados por esses meninos extremamente inteligentes e bonitos. Eles são, mesmo, o futuro.
Marília Hughes: O roteiro nasceu do encontro com esses jovens. A relação entre o passado e o presente já estava na origem do projeto. Também, essa busca por direitos, a tentativa de resistir bravamente. Eles nos inspiraram, especialmente o que estavam vivendo naquele momento, com a instituição de uma família não convencional.
Como se deu a estruturação do roteiro? Os caráteres episódio e elíptico já constavam na escritura e/ou foram se acentuando nos processos de filmagem e montagem?
C: Desde o roteiro pensamos nas lacunas. Queríamos trabalhar no sentido de fazer o espectador ir construindo a história, não revelando tudo a ele, criando “buracos” propositais, justamente para fazê-lo trabalhar ativamente na construção da narrativa, respeitando-o e não o subestimando. As imagens favorecem essas lacunas. E isso vem muito da Marília, da maneira como ela pensa no visual. Na montagem, percebemos como o roteiro estava dialético, Naquele momento em que eles dançam, a gente fala do amor romântico. Logo depois, vamos ao hospital, aquilo da Santa Ceia, e passamos a um amor mais etéreo, familiar. As imagens sempre vão jogando a trama para frente.
M: A própria questão da gravidez foi trabalhada em dois momentos. No primeiro, a barriga não está visível. No segundo, em virtude da elipse, ela se torna identificável socialmente, deflagrando as reações. Portanto, saímos do campo intimo, do segredo do trio, e chegamos ao social. Trabalhamos juntos em muitos curtas, estamos no quarto longa-metragem (dois ainda a serem lançados), e essa divisão de trabalho é natural. Tenho o ímpeto de pensar nas imagens e o Claudio de estruturar os diálogos a partir do texto. Mas neste caso, não esperávamos a gravidez, que mudou completamente o filme. Quando eles nos informaram, jogamos fora a ideia anterior e tivemos de começar do zero. Isso tudo num tempo curtíssimo para elaborar o novo enredo, o que nos dividiu mais que nunca.
Como foi o trabalho com os atores Mila Suzarte, Gilmar Araújo e Igor Santos?
C: Eles são atores de teatro amador. Quando ainda moravam em Serra do Ramalho, chegaram a fundar um grupo. Isso é mais que meio caminho andado, porque eram disponíveis à criação artística. Claro, estamos falamos de teatro no sertão, não de cinema. Passamos para eles nossos desejos, exemplificamos, mostramos filmes, além de ponderarmos que a nossa atuação não é hiper-realista, tem realmente uma estranheza. O silêncio nos é importante. Já o cacoetes do teatro, jogamos todos fora. Do que os três estavam acostumados ao que apresentamos era um abismo considerável. Entretanto, chegamos rápido a um resultado. Os três são muito dispostos e elaborados.
M: Fizemos uma preparação bacana, inclusive realizamos uma oficina de cinema. Levamos parte da equipe para falar sobre funções. Como Mila, Gilmar e Igor já eram iniciados, aproveitamos para trabalhar a formação. Isso obviamente aumentou o interesse deles no projeto. Passamos filmes, conversamos sobre cinema, traçamos as diferenças com o teatro que eles conheciam. Em Serra do Ramalho não tem pousada, ou seja, ficávamos hospedados na casa de moradores. Foi tudo muito próximo. Quando os conheci, sabia, de cara, que daria certo. Cem por cento do elenco é local. Os familiares interpretam a si próprios.
As tradições e o conservadorismo interiorano perpassam o drama dos personagens. O filme é, de certa forma, uma projeção de como vocês também resistem a esse conservadorismo?
M: Acho que sim. Para mim é, total, uma forma de colocar isso, especialmente num momento tão oportuno. É importante a veia libertária desses jovens que lutam para se afirmar. Me representa totalmente. Por isso decidimos fazer o filme. Esse é o tipo de história que nos interessa fortemente, pois fala muito de nós. É oportuno, pois chega num momento em que a onda conservadora é visível, tão à vontade. O filme é a nossa forma de falar sobre isso, sim.
Como enxergam atualmente o papel de vocês, enquanto cineastas e criadores de narrativas, nessa crise de várias dimensões que o Brasil atravessa?
C: É tão duro. As narrativas que temos visto no dia a dia são bizarras e absurdas, nos deixam muito tristes, nos fazem sentir impotentes. Por outro lado, temos de resistir e ser libertários. Mesmo. Precisamos falar desse contrapoder, lutar contra as forças instituídas, de todas as formas possíveis. Isso tanto no cotidiano, na nossa microfísica, quanto da maneira mais escancarada possível. No começo, qualquer coisa que publicávamos na página do filme no Facebook era comentada por cerca de 50 pessoas destruindo a gente. Tentamos dialogar, mas foi impossível. Um dia, enchi o saco e comecei a bater de frente. Várias pessoas entraram lá para me ajudar. Hoje, nem preciso brigar lá, pois ao menor sinal de manifestação preconceituosa, homofóbica e fascistas, vem um exército contra-atacar.
Porque A Cidade do Futuro demorou tanto para ser lançado em circuito comercial?
C:.Levando em consideração que há quatro anos e dois meses ele não existia, penso que está chegando no circuito num tempo bom. Maravilhoso, até, eu diria. Filmamos logo, montamos rápido e não tivemos uma postura vaidosa de tentar apenas os maiores festivais. Disponibilizamos o filme ao primeiro evento bacana que nos convidou. Ainda sobre isso de lançamento, estamos cansados de ver filmes muito bons sem poder de fogo, sem o mínimo de estrutura para ser chegar aos espectadores.
M: Foi importante esperar ter recursos para investir em divulgação, para ter oportunidades de disseminar melhor o filme. Teria sido frustrante lançar e não poder reunir o elenco para um debate, por exemplo, não trabalhar nas redes sociais. Era necessário ter essas condições.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Salvador/Rio de Janeiro, em abril de 2018)
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