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O gaúcho Otto Guerra demonstra felicidade diante do atual panorama diversificado e efervescente da animação brasileira. Profissional das antigas, ele começou nessa área quando não existia sequer um projeto para que a modalidade se desenvolvesse plenamente do ponto de vista comercial por aqui. Depois de passar a infância e adolescência criando histórias em quadrinhos inspiradas nas similares franco-belgas de Hergé, e de fazer animações para comerciais numa agência de publicidade, ele fundou, aos 22 anos, a Otto Desenhos Animados, pioneira debruçada sobre exemplares quase exclusivamente para adultos. Em A Cidade dos Piratas (2018) ele próprio se torna personagem para contar os “infortúnios” que os levaram a deixar de lado a ideia de uma simples adaptação dos Piratas do Tietê, personagens criados por Laerte, para fazer algo que aborda, inclusive, o processo do cinema. Mas será que podemos confiar em tudo que está na telona? É o que você vai saber agora neste Papo de Cinema exclusivo.

 

Como foi esse processo de se tornar, de certa forma, protagonista do filme?
Na verdade não sou bem o protagonista, pois sou alterego do capitão. Na vida real, durante o percurso, atropelei a ficção, especificamente os Piratas do Tietê, que deram origem ao projeto. A própria Laerte chama eles agora de múmias, acredita que eles são homofóbicos, por exemplo. Tive um câncer na época da produção, então acabei misturando a ficção e a realidade. Mas, nada do é mostrado ali aconteceu de fato. Não sou eu, portanto, é um personagem. Não mijo fora da patente (risos). Os animadores até me sacaneiam por causa disso.

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O filme é fruto de uma impossibilidade, certo? Qual a sua reação inicial quando a Laerte desistiu por acreditar que os Piratas do Tietê eram machistas?
Ela não chegou a dizer que não podia. Isso também é uma mentira do filme. O que verdadeiramente motivou a mudança foi o trabalho atual dela, que é bem mais profundo do que os próprios Piratas. Eles são uma piada muito boa, que continua atual, mas o trabalho dela depois dos anos 2000 deu um salto olímpico de profundidade e existencialismo. Apesar dela não gostar mais dos Piratas, não colou nenhum entrave. Foi uma decisão nossa.

 

Como você chegou a essa mescla de enfrentamento de questões urgentes com reflexões consistentes sobre o ato da concepção artística?
A Larte parece ter um radar. O personagem Azevedo, por exemplo, foi criado por ela no início dos anos 2000.  É surpreendente como a Laerte previu essa onda de ódio que toma conta do Brasil atualmente. Isso do presidente homofóbico é um indício claro disso. Ela parece ter uma bola de cristal. Apenas aproveitamos isso.

 

O personagem cuja voz é a Marco Ricca deve ter um punhado de inspirações reais, não?
Sem duvida, ele é uma síntese do patriarcado, do macho, do cara inseguro quanto à sua sexualidade. Por isso ele é tão radical. Mas nós apenas transferimos ao filme esse universo da Laerte.

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No filme há um combate a discriminações e tudo que vem a reboque delas. Acredita que seja algo essencial nos dias de hoje, com a intolerância crescente, a arte também se posicionar?
Acho natural. Arte é resistência, não apenas ao patriarcado, mas à nossa civilização contraditória, como na questão de concentração de renda. O neoliberalismo deu errado. Não pode existir uma massa de gente morrendo de fome e tantos milionários. A arte lida sempre com essas questões existenciais. O filme casualmente retrata uma figura típica da contemporaneidade. Quando nasci, pessoas eram castradas quimicamente na Inglaterra por serem homossexuais. Houve uma evolução rápida quanto aos costumes. Agora temos um retrocesso. Mas o que avançou não tem volta.

 

Como veterano e, portanto, testemunha de vários movimentos e fases, como você enxerga o atual momento da animação no Brasil?
Bah, para mim o quadro atual é quase inimaginável. Nunca pensei que avançaríamos tanto. Quem conhece animação brasileira dos anos 70, como eu, olha para o agora e não acredita. O Brasil assombrou o universo da animação mundial, aliás, continua assombrando. A gente não é oriental, norte-americano ou europeu. Essas escolas estão perplexas diante da nossa estética, da direção de arte e do conteúdo da animação brasileira. Isso é uma mudança radical. Com esse governo atual obviamente haverá um retrocesso, mas o movimento já está aí, é uma realidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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