Nascido em Viena, na Áustria, Vicente Amorim é filho do diplomata brasileiro Celso Amorim. Mas sua identidade é completamente brasileira, apesar de ter morado também na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Holanda. Sua carreira no cinema começou como assistente de direção de nomes de prestígio, como Cacá Diegues, Murilo Salles, Bruno Barreto e Hector Babenco. Apesar de ter estudado Economia no Rio de Janeiro, a paixão de verdade foi despertada pela sétima arte. Após alguns curtas-metragens e de ter estreado na televisão com a série A Justiceira (1997), mergulhou de vez na tela grande com o documentário 2000 Nordestes (2001) e com o drama O Caminho das Nuvens (2003). Depois veio o internacional Um Homem Bom (2008) – estrelado por Viggo Mortensen e Jason Isaacs – e uma série de outros trabalhos, entre longas e seriados, que lhe renderam prêmios e indicações nos festivais de Gramado, Cartagena, Guadalajara, Havana, Miami, Montreal, Paulínia, Rio de Janeiro, Roma e San Sebastian, entre outros. Seu mais recente esforço combina bem essas duas vontades: o projeto A Divisão, composto por uma série, que estreou em 2019, e um filme, que chega agora aos cinemas. Aproveitando esse lançamento, o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Vicente, o que veio primeiro, o filme ou a série?
O filme veio primeiro, mas a série veio junto. Não é justo, do ponto de vista de produção, separar um do outro. Não é um filme que virou série, ou o contrário. Tudo foi ao meio tempo. Quando os produtores me formataram o projeto, a ideia era fazer os dois. Desde o começo pensamos assim. Para fazer algo com as dimensões de A Divisão, com o orçamento que precisávamos, escolher apenas um, ou outro, não seria possível. São produtos complementares, porém independentes. Não é necessário ver os dois, mas se assistir, melhor. Quem conhece ambos, não verá nada requentado. Do ponto de vista do processo artístico, o filme nasceu primeiro. Foi o primeiro roteiro a ser feito. A partir daí, partimos para desenvolver a série. É importante colocar isso, ainda mais agora que o longa está sendo lançado, pois é comum o oposto acontecer. Mas não seria justo no nosso caso. Foi somente quando o roteiro do filme estava de pé que decidimos partir para a série. O que seria feito depois foi determinado a partir daí.
Bom, ambos partem de uma situação real, que foi o momento difícil vivido no Rio de Janeiro no final dos anos 1990. Como foi o trabalho de pesquisa?
Cara, esse deve ser o meu quarto ou quinto longa baseado em fatos. Todos foram inspirados, de uma forma ou outra. Então, trabalhar a partir do rea, não era uma novidade para mim. Estou acostumado, e acho que faço bem. Mas é um desafio, e sempre diferente. Porque como colocar a ação, no caso de A Divisão, de toda uma estrutura da polícia carioca, ao longo de vários anos, por mais que o recorte seja no ano de 1997, em apenas duas horas de filme? É muito difícil fazer isso e ser fiel aos fatos e à verdade dos personagens nos quais foram baseados. A única forma era através da pesquisa.
Entre tantos possíveis caminhos, qual foi o primeiro passo?
Decidimos que era importante entrevistar os envolvidos na historia verdadeira. Um dos roteiristas, o Zé Luís Magalhães, ele é o Santiago (personagem do Erom Cordeiro) da vida real. Portanto, partimos de uma vantagem, pois no momento de procurar as pessoas e entender como detalhes mínimos aconteciam, situações que às vezes o roteirista ou mesmo um pesquisador não teria acesso, nos tínhamos essa informação privilegiada graças ao Magalhães. Por outro lado, esse foi o primeiro roteiro dele. E ainda que não estivesse sozinho – eram mais 3 roteiristas, todos trabalhando juntos – significou uma curva de aprendizado muito grande para todos nós, para ele e para a gente. Afinal, tínhamos que entender como consolidar eventos, amalgamar personagens, organizar a timeline verdadeira, para que esse filme de ficção não extrapolasse certos limites e se tornasse uma obra desassociada da realidade. Isso mataria toda as nossas intenções.
A participação do Magalhães foi fundamental, portanto?
Através dele, tivemos acesso à polícia, aos outros policias que viveram aquela história com ele. Mas não foi o único. Contamos também com o AfroReggae Audiovisual, que nos ajudou a falar com vítimas e também bandidos e sequestrados. Todos os lados desse enorme conflito dentro do qual aconteceu essa onda de sequestro no Rio de Janeiro. Tudo isso foi, de fato, fundamental para o sucesso dessa empreitada, e durou meses, quase um ano de entrevistas, visitando os lugares, falando com as pessoas. A partir daí conseguimos chegar num momento onde eu e os outros roteiristas sabíamos tanto quanto o Magalhães, com a diferença de não termos vivido aquela barra pesada.
Você já dirigiu dramas religiosos e aventuras apocalípticas, ou seja, parece se interessar por essa versatilidade. Qual o maior desafio enfrentado em A Divisão?
Olha, antes de A Divisão, tinha feitos alguns outros filmes que continham cenas de ação, e o principal era o Motorrad (2017). O Corações Sujos (2011) tinha um lance meio de samurai, também, algo de gênero. Porém, uma coisa é ter algumas cenas especificas e pontuais, com quase todos esses elementos sendo contrabandeados para se adaptarem à história. Outra bem diferente é você trabalhar isso dentro de uma construção de fantasia psicanalítica, como foi em Motorrad. Agora, por fim, escolhemos um caminho diferente quando vimos que seria necessário trabalhar isso como parte da estrutura em cima da qual seria construído o drama dos personagens. Esse foi o grande desafio de A Divisão, portanto.
O que A Divisão apresenta de diferente de tantos outros longas similares?
Fazer que as cenas de ação não fossem banais. Tinha que ter tiro, porrada e bomba, mas sem virar uma babaquice tipo Michael Bay, com todo o respeito à técnica dele. Mas esses filmes são vazios, e eu estava buscando uma profundidade. O Kurosawa dizia que cada cena de ação deveria ser o resumo de todo o filme. Tendo isso em mente, já no roteiro pensávamos que as cenas de ação não deveriam ser hiatos dentro do filme, mas, sim, veículos para o desenvolvimento dos personagens e que possibilitassem um envolvimento e conhecimento do espectador com a trama. Nunca quis fazer, nesse contexto de violência urbana carioca, um filme no qual a violência fosse um espetáculo. Ela precisava, ainda mais numa proposta realista como a do A Divisão, não ser filtrada, tinha mesmo que ser incômoda, transmitindo a angústia que os personagens viveram quando estavam lá na vida real. Buscávamos ação, mas com dimensão humana.
Vamos falar um pouco sobre o elenco. Como foi feita a seleção?
Teste. Desde o começo, coloquei na cabeça que só trabalharia com atores que topassem fazer teste para o filme antes de serem escalados. Porque eram personagens com características muito especificas. Queria deles um tipo de atuação, a não-atuação, que acontece quando você sente que os personagens estão vivendo aquelas situações de fato, e não as interpretando. Por isso fomos testar os atores que estávamos pensando. Testamos dez intérpretes, no mínimo, todos de primeira linha, para os personagens principais.
Silvio Guindane é um nome conhecido, mas geralmente não como protagonista.
Com todo respeito aos demais, quando testei o Silvio Guindane, o primeiro que pensei para o personagem do Mendonça, tive certeza de imediato. Sabia que era um bom ator. Conheço ele desde criança – fui diretor-assistente do Como Nascem os Anjos (1996), quando ele era ainda uma criança, mais de duas décadas atrás! Mas o que ele trouxe, para esse personagem, foi uma pancada. Até testei outros atores, até para ter um nível de comparação, mas o Silvio estava pronto! Ao mesmo tempo monstruoso, mas tão frágil. O Mendonça é um homem muito mais frágil que o Santiago. Esse é o demônio, mas o outro é um cara que acredita, ainda que pelos motivos errados, no que está fazendo. E por isso está quebrado. Não há uma recíproca por parte do sistema. Ele vira um ronin, dentro da polícia.
Falando no Santiago, como chegaste ao nome do Erom Cordeiro?
Da mesma forma. Já o conhecia, o havia testado para outros filmes. Tava de olho, querendo trabalhar com ele há algum tempo. Tinha uma boa vontade, portanto. E, por isso, estava torcendo para que o teste dele fosse bom, o que de fato acabou acontecendo. Ele entregou, assim como os outros que acabaram sendo escolhidos. Se dispuseram a trabalhar comigo, e com a preparadora de elenco, fazendo laboratórios, subindo morro, por 5, 6 semanas antes de começar. Essa foi uma das razões para não termos recorrido aos medalhões de sempre. Temos grandes atores no Brasil, e com todo o respeito, mas às vezes o tamanho do ator ofusca o personagem. E era importante que o espectador entrasse nesse filme, da mesma forma que aqueles que estavam vivendo os personagens. Foi uma coisa que o Meirelles fez genialmente no Cidade de Deus (2002), por exemplo.
No filme há também um dos maiores galãs da televisão brasileira, Marcos Palmeira, num papel bem diferente daquele que o público está acostumado a vê-lo. Foi preciso um esforço especial para convencê-lo?
Não. O Marquinho, esse sim, o conheço há mais tempo do que gostaria admitir (risos). Eu não sabia, mas desconfiava que a hora que chegasse até ele com esse papel, tão fora do que as pessoas poderiam esperar dele, pularia em cima. E não deu outra. Quando liguei e expliquei o personagem, na hora topou. Embarcou por completo, com todo mundo. Foi na favela, pegou em arma, teve aula de tiro… serviço completo. Queria muito que esse personagem, sem dar spoilers, não fosse aquela coisa caricata, o que se espera de um cara desse. Teria que pegar o público de surpresa. O espectador tinha que torcer por ele, e não pelos outros.
Títulos como Cidade de Deus e Tropa de Elite (2007) serviram de referência?
Olha, acho que o caminho que o Cidade de Deus e o Tropa de Elite conseguiram oxigenar um gênero que, claro, já existia, mas estava esquecido. Outros, desde então, foram feitos, pois há uma tradição que foi renovada, pelo Meirelles e Padilha. Sendo assim, não há como fazer outro filme, no mesmo contexto, e ignorá-los. Precisa tê-los como referência, até para não os repetir. Contando uma história nova, diferente. A que a gente conta fala de uma política de segurança pública que tem esse conceito de que a polícia existe para proteger a elite do resto da população, e como a isso afeta os personagens. Qual é a função não inscrita da polícia? Buscamos uma construção narrativa praticamente sem heróis, só anti-heróis, em que os vilões e os mocinhos são quase as mesmas pessoas e estão nas mesmas funções.
Aliás, há muito pouco no filme sobre os bandidos, a ação é toda vista pela ótica dos policiais.
A partir dessa realidade que estamos discutindo, apresentamos ao espectador uma situação e um ponto de vista sobre a violência urbana brasileira, não diferente conceitualmente, filosoficamente, mas vista de um outro ângulo. Sem esquecer que apresentamos todos os estratos da polícia, desde o secretario de segurança, o chefe de polícia, até dentro das delegacias. Da truculência à inteligência. Será que os fins justificam os meios? Mesmo passado 20 anos atrás, o filme levanta uma discussão muito atual.
Como A Divisão se encaixa nesse momento do cinema nacional, em que é tão atacado pelo governo, ao mesmo tempo em que é indicado ao Oscar e registra recordes de bilheteria?
É curioso… o momento no qual o cinema brasileiro sofre seu maior ataque interno, é também o de maior sucesso externo. Isso é verdade em relação aos prêmios em Cannes, com os filmes do Kleber Mendonça Filho (Bacurau, 2019) e do Karim Ainouz (A Vida Invisível, 2019), a indicação ao Oscar do Democracia em Vertigem (2019). Modestamente, e numa outra forma, a gente está tentando trazer um filme que se encaixa dentro desse contexto. Não foi nem lançado nos cinemas ainda, para se ter uma ideia, e já foi vendido para mais de 10 países! Antes mesmo de ser exibido, já é um sucesso internacional. Queremos ser vistos no Brasil, mas também no exterior. Afinal, esse resultado é reflexo da força interna da nossa cinematografia, e da diversidade, que vai desde os milhões de espectadores do Paulo Gustavo até esses prêmios todos. Essa indicação ao Oscar com um filme tão importante e sensível, até do ponto de vista pessoal, que a Petra fez, vem para coroar tudo isso. Estamos vivendo um momento muito especial.
(Entrevista feita em janeiro de 2020)