Roberto Andò é um dos grandes nomes do cinema italiano contemporâneo. Com seu longa mais recente, A Estranha Comédia da Vida, que chega agora aos cinemas brasileiros, ganhou as duas mais importantes premiações cinematográficas da Itália: o David di Donatello – o ‘Oscar’ local – de Melhor Roteiro Original, além de ter sido apontado como “Filme do Ano” pelo Sindicato Nacional de Jornalistas de Cinema, o mais alto reconhecimento da imprensa no país. Ao todo, essa comédia dramática que investiga um momento de crise pessoal do mestre Luigi Pirandello, e como esse conflito interno teria dado origem a uma das suas obras mais importantes, recebeu inacreditáveis 14 indicações ao David di Donatello, tendo recebido quatro estatuetas (ganhou ainda como Melhor Produção, Direção de Arte e Figurino). Aproveitando o lançamento por aqui, nós conversamos com o cineasta, que falou sobre sua relação com a obra do autor e o quão importante era para ele ter em cena mais uma vez um dos seus principais parceiros artísticos, o ator Toni Servillo. Confira!
Olá, Roberto. A última vez que conversamos, há alguns anos, você estava lançando o filme O Caravaggio Roubado (2018). O quanto você mudou enquanto cineasta ao longo destes anos?
Olha, posso dizer, que, em termos gerais, a partir de um certo momento da minha vida, descobri um senso de leveza no meu olhar. Busco fazer um tipo de cinema que também seja peculiar, um estilo mais clássico. É o que tem me atraído nos últimos anos. Talvez eu tenha mudado, pois redescobri essa leveza como algo que carregava comigo desde a minha infância, mas que, em algum momento da minha jornada, tive a impressão de ter perdido. Você percebe que aquele sentimento lhe é familiar. É, também, um meio de balancear o drama com a comédia. De alguma forma, esse filme, A Estranha Comédia da Vida, é uma fantasia sobre Pirandello, um autor que é muito importante para mim. Mas não só isso, é um ícone em toda a Itália. E se tornou conhecido principalmente pela habilidade que tinha em equilibrar o cômico com o trágico. Esta é uma característica não apenas do Pirandello, mas, ousaria dizer, da própria Sicília. Uma vez lá, você pode ir a um funeral e, dez minutos depois, se deparar com algo muito engraçado.
Há, no filme, uma passagem que mostra um diálogo entre o padre e os dois dramaturgos e funerários que exemplifica bem isso que você está dizendo.
(Risos) É isso mesmo. Pirandello era capaz de capturar esse sentimento da realidade, da vida comum que estava ao seu redor. Este pequeno vilarejo onde nasceu, Agrigento, fica em uma região conhecida por ser assim, por ver o mundo desse jeito. É algo muito forte em todos que nasceram e foram criados por ali, e ele foi hábil em reproduzir isso em suas obras.
Antes de entrarmos na obra de Pirandello, gostaria de lhe questionar sobre o título original do filme, La Stranezza. Que ‘estranheza’ é essa a que você se refere?
É difícil de traduzir essa expressão. Não seria exatamente uma ‘estranheza’, como você disse. Você perde algo numa tradução objetiva. Pirandello estava pensando nestes seis personagens que estavam em busca por um autor há muitos anos. Era claro para ele, desde o início, que a realidade e a ficção teriam que se encontrar em algum momento. Porém, não sabia como alcançar isso de uma maneira cômica. Então, por muitos anos ficou obcecado por essa ideia. Certo dia, quando estava escrevendo para um amigo, teria comentado que estava “sentindo uma certa estranheza, mas não sei ao certo onde isso irá me levar”. Foi por isso que escolhemos esse título. E também por Pirandello, em mais de uma ocasião, ter afirmado que existem três camadas na mente humana: uma íntima, uma pública e uma da imaginação. Essa estranheza viria dessa última, e seria onde viria o mundo imaginado pelos olhos de Pirandello.
Esse é um sentimento muito vivo na tua filmografia, certo?
Sim, com certeza. Creio que desde Viva a Liberdade (2013) sempre fiz questão de inserir nas minhas histórias um território, um espaço de leveza e possibilidades. Não que isso queira dizer que não haja profundidade, mas, sim, que tenha uma superfície que já aponte para o que, de fato, importa.
E o que você pensa sobre o título em português, A Estranha Comédia da Vida?
Bom, quer dizer, não é ruim (risos). Já vi pior em outros países ou com outros filmes (risos). O título internacional, invariavelmente, acaba sendo meio estranho para o autor. O segundo filme que fiz, que até hoje gosto muito, era estrelado por Daniel Auteuil e Greta Scacchi, e o nome em italiano é Sotto Falso Nome (2004). Em português seria algo como “Sob falso nome”, creio. Porém, na França foi traduzido como Le Prix du Désir (O Preço do Desejo, em tradução direta). Isso, sim, foi algo terrível para mim (risos). E você não pode fazer nada a respeito. Então, diante de situações como essa que já passei, A Estranha Comédia da Vida não me parece tão problemático.
Nos créditos finais há fotos, lado a lado, de Toni Servillo e de Luigi Pirandello, e a semelhança entre os dois é impressionante. Além disso, Servillo é um grande parceiro seu, já tendo participado de vários dos seus filmes. Ele foi sua primeira opção?
Ah, com certeza. Há anos vinha dizendo ao Toni: “ainda vamos fazer juntos um filme sobre o Pirandello”. É realmente chocante perceber como os dois são parecidos, possuem até mesmo um olhar semelhante. Há várias fotos do Pirandello que se pode observar um olhar um tanto demoníaco, perverso, e Toni é capaz de emular essa mesma expressão. Ao mesmo tempo, nesse filme não nos deparamos com um Pirandello intocável. Veja bem, na Itália ele é visto como um dos mais importantes escritores que já tivemos, é uma figura monumental. É como Dante Alighieri. Além disso, era importante ter Toni comigo, pois é capaz de oferecer uma certa fragilidade ao personagem, uma humanidade. Afinal, está um tanto perdido nesse momento em que o filme o retrata. Está obcecado por uma nova comédia, mas sem conseguir encontrar o tom exato para escrevê-la. A situação não está clara, e está buscando por algo que se tornaria muito importante para ele. Afinal, esse viria a ser a sua peça de maior reconhecimento em todo o mundo.
Você é o diretor, mas também um dos roteiristas. Você consegue separar o que são fatos e o que é fruto da imaginação em A Estranha Comédia da Vida?
Sim, pois, como estava dizendo antes, conheço bem Pirandello. Preciso dar crédito também a Leonardo Sciascia, um amigo que me deu um livro sobre Pirandello que acabou sendo a base dessa história. Foi um presente, uma biografia que foi muito importante para mim, pois abordava essa relação entre a vida e a obra dele. Na maioria dos escritos sobre Pirandello, essas duas coisas estão sempre muito conectadas, é difícil separá-las. Mas alguns fatos são reais. É verdade que Pirandello foi até à Sicília naquele ano para celebrar o aniversário de Giovanni Verga, um autor siciliano muito importante. Essa é a situação principal. É verdade, também, que Pirandello era muito grato a sua babá, pois, quando criança, teria sido ela que havia contado a ele todas as histórias a respeito da relação entre a vida e a morte. Ele ficou muito impressionado com esses contos.
Mas pode-se perceber também que muito do que está no filme foi criado por você e pelos demais roteiristas.
Sim, trata-se de uma fábula, afinal. Há muita imaginação envolvida. Pra começar, o fato dele ter se encontrado e conhecido essas duas figuras mágicas, esses coveiros – ou agentes funerários – que gostavam, mesmo, de serem dramaturgos. Pode uma combinação melhor do que essa? (risos)
Roberto, o que você tem a dizer ao público brasileiro que irá descobrir agora A Estranha Comédia da Vida?
Penso que o mais interessante para mim é perceber o modo como as diferentes audiências ao redor do mundo tem recebido esse filme. Pelo pouco que sei a respeito da história e da literatura brasileira, creio que há muita coisa em A Estranha Comédia da Vida que pode despertar curiosidade no espectador daí. Não é apenas um filme siciliano, é uma história muito próxima ao Pirandello e a todos que o admiram.
Entrevista feita na conexão entre Brasil e Itália em novembro de 2023
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