A Fábrica de Nada (2018) é o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta português Pedro Pinho. Todavia, seria um tanto ingênuo taxa-lo de iniciante, pois estamos diante de um profissional com larga experiência cinematográfica, que, até então, tinha feito do documentário o seu principal meio de expressão. Formado na Escola de Teatro e Cinema de Lisboa, e na Escola Louis Lumière de Paris, ele também frequentou os cursos de Realização e Escrita da London Film School, na Inglaterra. Além do repertório teórico, Pedro dirigiu junto com Federico Lobo o documentário Bab Sebta (2008), exibido em diversos países e vencedor de muitos prêmios. Já em 2014, em parceria com Luísa Homem, dirigiu As Cidades e as Trocas, da mesma maneira alcançando êxito internacional. A Fábrica de Nada tem seguido esse caminho de láureas. O drama sobre trabalhadores de uma fábrica, que resistem à decisão dos patrões de fechar o local onde tantos trabalham, venceu um troféu especial da Federação Internacional dos Críticos de Cinema no Festival de Cannes de 2017, isso para citar apenas o mais significativo dos reconhecimentos. Confira nosso Papo de Cinema exclusivo com o realizador português Pedro Pinho.
Sobressai no filme a observação dos pormenores de uma lógica capitalista perversa. Como se deu a pesquisa para a construção dessas minúcias?
O roteiro do filme foi escrito a partir de uma pesquisa intensa e prolongada nessa região da Póvoa de Santa Iria (ao Norte de Lisboa), onde no prazo de dois anos fecharam mais de 30 fábricas. Entrevistamos vários operários que estavam em situações de fragilidade, de conflito laboral ou de desemprego. Os seus relatos dos processos de negociação e demissão continham vários pormenores de uma perversidade maquiavélica e várias estratégias de divisão e terrorismo psicológico. Achamos fundamental incluir alguns desses relatos, dramatizando-os em cenas do filme. O verdadeiro antagonismo do filme não é entre os operários e os seus patrões. Os patrões, aliás, desaparecem bem cedo da história. O conflito é entre os próprios operários, os seus dilemas, as suas angústias. Os seus corações, tal como os nossos, balançam entre o desejo de uma solução coletiva, de não ficar sozinhos, de tentar o impossível e, por outro lado, o interesse individual, o mal menor, o medo de ficar sem algo, o pavor de um futuro desconhecido. É essa a chantagem que o capitalismo reedita diariamente nas nossas cabeças: escolher entre um presente de capitulação e miséria ou a ousadia de um futuro incerto. Aí está a sua perversão. E também a nossa fraqueza, que apesar de trágica, horrível, é de uma infinita beleza.
Como ocorreu o processo de seleção do elenco?
O processo de escolha do elenco foi feito essencialmente nessa pesquisa. Nas entrevistas que fizemos com os operários da região. São na sua grande maioria não atores. Depois juntamos a esses alguns amigos com experiências variadas de palcos. Mas só ao longo do processo de preparação dos atores e dos ensaios fomos encaixando cada pessoa na sua personagem.
Sua experiência documental entra em que aspecto da construção narrativa de A Fábrica de Nada?
Meu percurso no documentário foi determinante na construção deste filme. No documentário o trabalho é de permanente gestão do inesperado. Muito como se tratasse de um exercício de pesca ou caça. Saber construir as situações ideais e depois saber esperar para recolher as pérolas. Claro, que o bicho nunca vai para onde nós esperamos… Sai sempre tudo ao contrário do que previmos. E essa capacidade de gestão do caos que se produz numa rodagem é um ensinamento do documentário. A capacidade para esquecer-se da mise-en-scéne que passamos a noite toda fazendo em casa e improvisar uma decupagem ali no momento, enquanto o bicho corre solto e assustado. Como este filme – apesar de inteiramente escrito e ficcional – contava muito com a improvisação dos atores, o trabalho de direção do elenco era muito esse. Os atores não tiveram acesso ao roteiro. Eu explicava diariamente o que iríamos filmar. Fazia um briefing individual em que explicava a cada um deles o que precisava que dessem àquela cena. Quais eram, em traços gerais, as suas posições relativamente ao drama daquela sequência. E depois esperava que caíssem na minha rede, no meu engenho de pesca, com a câmera, o som, etc. Que dessem o olhar justo, a fala correta, o gesto significante. E como os atores não estavam fazendo aquilo que lhes pedi, mas sim sendo eles próprios perante um problema que lhes apresentei – a dar-se espantados a esse momento de agitação, como na vida – a verdade desses gestos imprime-se na película com muita força. Acho que é essa a maior virtude do filme. E claro que, tal como no documentário, isso só acontece se houver uma cumplicidade enorme entre quem filma e quem é filmado. Sem isso não se chega lá.
Em dado momento, seu filme é atravessado por uma cena musical. Essa, digamos, “anomalia” na narrativa estava prevista desde o início ou foi algo que surgiu no decurso do trabalho?
Esse ovni, como todos os outros ovnis do filme, estavam previstos desde a construção da ideia, desde a escrita do argumento. A grande questão, que não estava resolvida no início, era que forma lhes dar. E como fazer para que não fossem absolutamente dissonantes do corpo do filme. E o momento musical ajudou muito a afinar outras soluções. Deu o tom. Sua fragilidade e precariedade, a sensação de vergonha alheia, mas, ao mesmo tempo de brutal identificação, o sentimento de adesão e de ternura que não conseguimos deixar de sentir por aquela gestualidade tão torpe, ajudou-nos a perceber o que o filme deveria ser. Um gesto torpe, de imperfeição, mas de experimentação ousada.
Você não estabelece um juízo de valor entre os operários resistentes e os desistentes. Esse olhar generoso, sem espaço para julgamentos, lhe é essencial?
Claro. Como disse no início, o antagonismo do filme é esse mesmo. Entre quem desiste e quem resiste. Ora, esse antagonismo é o mesmo que está dentro de cada um de nós, em todos os momentos. Na nossa ação política perante o mundo e na nossa vida, nos nossos posicionamentos éticos e nas nossas ações. Não poderia condenar ou vangloriar algum dos lados, se as suas razões estão em permanente batalha dentro de mim. Claro que desejamos sempre que vença aquilo que temos de resistentes, de intransigência perante a agressão e as injustiças, de coragem. Mas sabemos que, infelizmente, nem sempre é assim. Senão, não estaríamos aqui, no meio desta catástrofe a que chamamos século XXI. O estado do mundo é também da nossa responsabilidade individual. Deve-se aos momentos em que desistimos e deixamos passar.
Como você situa A Fábrica de Nada dentro a atual produção cinematográfica portuguesa?
Acho que a produção cinematográfica portuguesa – apesar de escassa e sempre se debatendo com dificuldades de financiamento – vive um momento muito feliz. Porque uma nova geração, muito alargada, pode chegar à frente e, aproveitando a herança deixada por alguns criadores extremamente radicais (como o Manoel de Oliveira, o César Monteiro, o Pedro Costa, a dupla Antonio Reis e Margarida Cordeiro, etc), experimentar uma série grande de novas formas e de construções narrativas. O fato de não haver um mercado considerável em termos de números, de não haver uma indústria, foi muito positivo para o cinema português. Porque o obriga a reinventar-se permanentemente nas suas formas, livre dos constrangimentos comerciais. Paradoxalmente, o seu sucesso comercial (fora de portas) é tanto maior quanto mais liberdade houver na sua forma. A Fábrica de Nada é um bom exemplo disso. Como tinham sido o Tabu e outros anteriormente.
O modelo capitalista lhe parece falido ou ao menos fadado à obsolescência?
Na Europa, sobretudo, habituamo-nos a pensar que o capitalismo sempre esteve aqui. Que a vida coletiva entre os seres humanos sempre foi regida por suas leis. Sabemos que não é assim. O capitalismo é um fenômeno muito recente na história da humanidade. Umas centenas de anos não são nada em termos históricos. E só agora, recentemente, é que essa lógica cobre uma parte quase inteira do planeta. Até há pouco tempo, grande parte da humanidade não sabia o que isso era. No Brasil vocês ainda têm a sorte de ter uma série de sociedades que são alheias a esse sistema. Tornou-se quase uma quimera pensar que o mundo pode funcionar de outra maneira. Mas a verdade é que funcionou durante muito mais tempo sem o capitalismo do que com ele. Os povos da Amazônia, das Américas no geral e muitos povos africanos ou da Oceania souberam viver milhares de anos evitando, refreando, eliminando da construção das suas sociedades e culturas as lógicas fundamentais que levaram a que surgisse o capitalismo. Se eles conseguiram fazê-lo durante tanto tempo, nós também haveremos de conseguir. E nunca como hoje foi tão unânime a opinião de que o mundo não pode prosseguir com o rumo em que está enfiado. O trem dirige-se a toda a velocidade contra a parede e nem sabe onde fica o travão. Temos que pensar, falar, agir rápido e em conjunto para saber como parar essa porra.
(Entrevista feita por e-mail em setembro de 2018)