Escrito originalmente por Dino Buzzati no fim da Segunda Guerra Mundial, A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília (2019) conta uma aventura a respeito dos humanos pelo ponto de vista dos ursos. Na trama, a comunidade de animais vive livremente na floresta siciliana, até Tonio, filho do Rei Leónce, desaparecer durante a pesca. Aos poucos, o grupo suspeita que o filhote possa estar vivendo entre os homens num castelo. Começa então a busca que levará à descoberta dos perigos do luxo e do esquecimento das origens.
A história envolve buscas pelo poder, a relação entre natureza e civilização, o medo das diferenças e a necessidade de união para superar obstáculos. Curiosamente, o filme selecionado no Festival de Cannes constitui o primeiro longa-metragem de Lorenzo Mattotti, ilustrador italiano com três décadas de experiência, mas que nunca tinha comandado uma equipe de mais de 100 animadores na realização de um filme.
A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília chega ao espectador brasileiro através do Festival Varilux de Cinema Francês, disponível em diversas salas de cinema pelo país. A animação possui cópias dubladas e legendadas. O Papo de Cinema conversou com Mattotti sobre o projeto:
Como uma fábula escrita na década de 1940 se adapta ao século XXI?
Quando Buzatti trabalhou nesta história, perto do fim da Segunda Guerra Mundial, era provável que ele estivesse fazendo referência à invasão da Rússia. Os ursos podiam ser os russos, e o Grão-Duque seria Hitler. Havia muitas referências à guerra. Mas quando li o livro pela primeira vez, eu tinha 16 anos, entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970. Na época, não pensei em nada disso. Não conseguia ver as referências na época: para mim, era uma grande fábula universal, e foi isso que me agradou. Era uma premissa imaginária com uma bela relação à natureza. Eu já adorava desenhar, e me encantava com os desenhos de Buzatti, a maneira como ele utilizava lendas e fábulas antigas. Ele estava profundamente enraizado na cultura italiana clássica.
Quando começamos a trabalhar com os roteiristas, percebemos que esta fábula contém diversos temas contemporâneos. A relação entre homem e natureza, as diferentes maneiras de viver juntos, as relações entre pais e filhos foram dimensões que quisemos aprofundar. Eu me dediquei à ideia bastante atual do pai cujo filho quer mudar de identidade. Sou italiano, meus filhos cresceram numa escola francesa, e em determinado momento, eu percebia que eles eram franceses, na verdade. Falavam a língua francesa perfeitamente, enquanto eu constatava que estavam perdendo a relação com a Itália. Este é um pequeno exemplo. Havia tantos temas interessantes na obra original! Isso inclui a nossa difícil relação com a morte e a dificuldade de lidar com o poder. Como gerenciar a realidade que foge ao nosso controle? Há a cobiça pelo poder, pelo jogo, as rivalidades entre homens e ursos. Tenta-se corrigir um mal cometendo outro mal. O Rei Leónce faz isso: ele tenta ser o mais correto possível, e neste caminho, acaba colocando o próprio filho em risco para seguir as regras.
O que me apaixona nesta história é o fato de trazer grande quantidade de conflitos de maneira poética, literária, com uma fantasia magnífica. Além disso, nenhum dos problemas é resolvido pela trama, porque é fundamental permitir às crianças refletirem por si mesmas. Depois da sessão, eles podem conversar com os pais, o que me parece indispensável no cinema infantil. Não queria fazer um filme em estilo parque de diversões, repleto de emoções físicas e auditivas, mas que te deixa perdido, surpreso, sem refletir sobre o que sentiu. Muitos pais me disseram que foi um prazer acompanhar esta exibição com os filhos, que ficaram emocionados. Os filhos queriam comentar no final, discutir a atitude de um ou outro personagem. Isso é o mais importante: fornecer ao público material de debate, de maneira bela, com direito a espetáculo, emoção e a alegria de contar histórias.
O quanto havia de desenhos à mão, e o quanto do processo foi computadorizado? As cenas de guerra constituíam o maior desafio?
Nossa, eu poderia falar uma hora sobre isso! Foi uma aventura imensa. No início, fiz dois ou três storyboards sozinho, para ter uma noção dos caminhos, e passei para os profissionais especializados em storyboard. Depois começamos os desenhos com traços simplificados, estudando as possibilidades de cada personagem e cada cenário. A equipe vai mudando: fizemos uma tentativa de trabalhar com o 3D durante um ano, mas a produção custaria caro demais. Mesmo assim, o processo nos ajudou a encontrar algumas soluções imagéticas. Assim, voltamos ao 2D tradicional. A grande serpente, as cenas de multidão, os militares e os pequenos ursos foram desenvolvidos a partir de um programa de computador específico para dar conta de tantos detalhes. Depois contratamos a equipe magnífica que tinha acabado de finalizar A Tartaruga Vermelha (2016). São grandes profissionais, entre animadores experientes e supervisores de cenários.
Aos poucos, a equipe se tornou grande. Ao longo de todo o processo, tivemos quase 150 pessoas envolvidas, trabalhando com o apoio do computador, mas fazendo os esboços à mão. Os cenários são todos criados no Photoshop, e as animações, através de técnicas tradicionais. Cada profissional acrescentou sua criatividade e sua experiência ao filme. O resultado é fruto do encontro entre grandes artistas. Eu tentava acompanhar o processo o tempo inteiro: estava todos os dias com a minha equipe para tentar resolver problemas estéticos. Mas na verdade eu não animava, porque essa não é a minha área. Só faço desenhos à mão. Foi uma experiência magnífica de contato com tantos animadores. Tivemos uma atmosfera amigável durante dois anos, desde a pré-produção até o final. Para mim, foi sobretudo uma grande experiência humana. Precisei aprender a falar com a minha equipe, transmitir a energia necessária, e não me esgotar diante dos problemas. Essa é uma novidade para alguém que, como eu, tem trinta anos de experiência e desenvolveu o hábito de trabalhar sozinho no meu estúdio. De certa maneira, sou como um urso de verdade, o que diz muito sobre minhas fraquezas e minhas habilidades.
Diria que realizou um filme infantil? Muitos diretores de animação rejeitam este rótulo como algo redutor.
Sim, com certeza fiz um filme infantil. Queria fazer um grande espetáculo, um belo filme de aventura que eu adoraria ter visto quando era pequeno. Eu teria me divertido com os animais e os monstros de A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília quando era criança. Na verdade, não gosto das séries infantis atuais, nem dessas animações televisivas, e muito menos das piadas que usam. Na minha infância, adorava as animações, obviamente, com piadas lúdicas. Mas esta não é a minha cultura cinematográfica. Preferi fazer um filme rico e profundo para crianças, para que tenham acesso a outras formas de imaginário, outras possibilidades de contar histórias. Não são apenas os americanos e os japoneses que sabem fazer animação – embora eu admire bastante os dois, diga-se de passagem. Há diversos mestres nesses países.
No entanto, pretendia demonstrar às famílias que também existem filmes com um forte prazer da fábula, da aventura, do ato de contar histórias. Sempre adorei me perder nas narrativas que me fazem refletir, e que falam da vida, da morte, dos amores. O cinema, para mim, permite todas essas possibilidades. Todas as fábulas precisam ser aceitas em sua ingenuidade, sua leveza, seu humor. Se eu fizesse um filme sozinho, com meu próprio mundo dramático interior, o resultado seria totalmente diferente. É o caso das histórias em quadrinhos, por exemplo, que costumam trazer um teor bastante sombrio. Talvez eu tivesse contado a mesma história em ritmo mais lento e contemplativo. Teria mais estranheza, e mais cinefilia também. Mas este não era o objetivo. O principal desafio era fazer uma obra popular. Não sei se conseguimos – talvez o resultado tenha sido autoral demais. Tentamos investir numa bela imagem, com uma grande estética, e oferecê-las às crianças. Isso me obrigou a efetuar diversas reflexões sobre o meu cinema e minhas ferramentas para contar histórias.
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