Um dos grandes atores do cinema nacional, Paulo Betti está na ativa desde o final dos anos 1970, quando estreou no elenco da novela Como Salvar Meu Casamento (1979). Desde então, foram dezenas de programas na televisão, um sem número de peças no teatro e outras tantas produções para o cinema. Só neste ano já esteve em cartaz com o drama Uma Noite Não é Nada (2019), de Alain Fresnot, em que aparecia como protagonista, e agora volta às telas com A Fera na Selva, dessa vez assumindo função quádrupla – além de atuar, é também roteirista, produtor e diretor! Aqui, no entanto, divide os créditos com a colega de cena Eliane Giardini e com o fotógrafo Lauro Escorel. Exibido pela primeira vez no 45o Festival de Gramado – de onde saiu com o Prêmio Especial do Júri pela “contribuição à arte dramática” – passou depois pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e até pelo Festival Internacional de Cinema de Punta Del Este, no Uruguai. Após tamanha espera, o filme entra finalmente em cartaz, com dois anos de atraso. Aproveitando a oportunidade, publicamos agora um bate-papo inédito e exclusivo que tivemos com o astro, que falou sobre esse projeto e a importância das parcerias no mundo artístico. Confira!
Como surgiu a ideia de levar A Fera na Selva para o cinema?
A primeira pessoa a se interessar por esse material foi a Eliane Giardini. Ela leu o texto original do Henry James e vislumbrou algo muito bonito. Assim, acabou me chamando para levarmos ao teatro, e depois para o cinema. Acontece que, entre os palcos e as telas, se passaram uns 20, 25 anos!
Este é o seu segundo longa como diretor. Entre Cafundó (2005) e A Fera na Selva, se passaram mais de dez anos. A direção é uma atividade esporádica na tua carreira?
Acho que é, sim. Basicamente, faço televisão e teatro, muito. Produzir filmes é uma tarefa muito árdua. Então, o fato de ter feito dois filmes já me deixa muito feliz. É tudo mais caro, menos dominado por mim, no cinema. Os maiores cineastas brasileiros vieram de famílias ricas, tiveram todas as condições para começar. Aprenderam a lidar com aquilo desde crianças. Veja o Walter Salles, ou o Fernando Meirelles, que talvez sejam os dois maiores diretores nacionais em atividade, grandes expoentes brasileiros em nível internacional: ambos vêm de famílias abastadas. Não quero com isso dar uma desculpa ou algo parecido, mas é uma explicação que cabe. O domínio da linguagem cinematográfica passa, também, pela utilização de câmeras desde a infância. Você se acostuma a enxergar o mundo através das lentes. Estou acostumado a ter essa visão através do teatro. Penso, primeiro, sempre em fazer uma peça, e não um filme. É outra linguagem. Mas tenho o desejo de contar algumas histórias no cinema. Principalmente aquelas que já abordei no teatro e penso que poderiam ter outra dimensão. Exatamente o que fizemos com A Fera na Selva. E já estou pensando num próximo, que será sobre as origens da canção brasileira.
No Cafundó, você dividiu a direção com o Clóvis Mello. Agora, com o A Fera na Selva, há novamente essa divisão, dessa vez com a Eliane Giardini e com o Lauro Escorel. Você se sente mais seguro dessa forma?
No Cafundó, comecei a escrever o roteiro com o Clóvis muitos anos antes do projeto se realizar. Quando conseguimos viabilizar, o convidei para estar ao meu lado também na direção, pois aquilo era tanto dele quanto meu. Assim foi, e fizemos tudo juntos, do começo ao fim. Em A Fera na Selva, no entanto, foi diferente. Mantive o poder comigo. Durante todo o processo de filmagem, eles não sabiam que estavam dirigindo o filme em conjunto. E não foi algo planejado por mim, não havia pensado em dar a eles o crédito apenas no final. Mas, durante o processo, foi isso que aconteceu.
Como são feitas essas divisões? É tudo em conjunto, ou cada um fica responsável por um aspecto diferente da produção?
Nesse caso, eu era o produtor. Então, tinha que resolver questões de grana. Às vezes assinando cheques no set, para ter ideia. Meu personagem fala bastante, e de um jeito calculado, então tinha que decorar muito texto, e ainda assim manter a cabeça no operacional. A Eliane tem uma verve muito boa para marcação de cena. Ela sabe com precisão onde quer estar, como se colocar em cena e que espaço ocupar. No teatro, a gente experimenta muito, mas no cinema não há tempo. As marcações no teatro vão acontecendo mais naturalmente, mas no cinema tudo precisa ser muito bem pensado antes. A Eliane assumiu essa função, e fazia muito bem. Ao mesmo tempo, enquanto íamos decidindo essas posições, o Lauro já pensava como enquadrar melhor, pra fazermos a cena funcionar. Foi tudo muito natural.
O Lauro Escorel é um dos grandes diretores de fotografia do cinema brasileiro, mas aqui ele assina também a co-direção.
A função dele no set era a de um diretor de fotografia. Ele foi chamado para isso. E fez seu trabalho com maestria. Mas não teria dado a ele o crédito de co-direção se não tivesse percebido ele como um diretor de ator. Era isso que me interessava. Quando fiz o convite, era porque tinha que ser ele. Se pegasse alguém mais jovem, não iria compreender a profundidade daquela questão filosófica e existencial. O Lauro dava orientações no ponto de vista da emoção que havia sido colocada em cena. Ou seja, era, também, um diretor de elenco. Por isso que achei justo colocá-lo ao nosso lado, como um dos diretores.
Em que momento você os avisou que seriam também diretores do filme?
Não sabia, também, que iria fazer isso. Não foi planejado. Adoraria ter essa astúcia. Mas não tenho, sou muito de estopim curto (risos). Não consigo planejar com tanta antecedência. Mas no último dia de filmagens, quando tudo havia se encerrado, fizemos uma festinha para comemorar a conclusão dos trabalhos. Depois, quando estava voltando para casa, o Lauro me deu uma carona. Nesse momento, aproveitei para agradecer o empenho e a dedicação dele. Foi quando me deu esse estalo. A Eliane já havia comentado isso comigo antes: “Paulo, o Lauro tá dirigindo pra caramba”. Eu sabia disso, pois estava adorando. É muito mais gostoso ter um diretor de fotografia realmente envolvido em todo o processo do que um que deixa as decisões com você e só se preocupa com os aspectos técnicos.
Começou como literatura, passou pelos palcos e agora está no cinema. Como se deu esse processo de adaptação?
Nós optamos por fazer os personagens um pouco mais formais, pois consideramos que, de outro jeito, iríamos diminuir o alcance da palavra do Henry James. É precioso você falar um texto como esse, que teve tradução do Fernando Sabino! Ficou bem interessante. Optamos, desde o começo, por fazer um filme que mantivesse sua origem teatral. Não há nada de mais nisso. Um crítico de cinema me disse: “se esse fosse um filme do Manoel de Oliveira, ou do Resnais, ninguém questionaria”. Acho que é bem isso. Eu sou o teatro, o cinema e a televisão. Transito por todas as áreas. Essa distância não é necessária.
Quais foram as suas principais referências para a elaboração de A Fera na Selva?
Limite (1931), do Mario Peixoto. Sempre sonhei fazer um filme ainda mais radical, em cima do desenho de câmera e das soluções do Limite. Não sei quantos tratamentos esse roteiro teve, mas posso te afirmar que nos primeiros havia a citação “inspirado no filme Limite, de Mario Peixoto”. Depois teve um momento que abandonei o Limite, pois tava soando um pouco pernóstico, até para aparecer nos projetos de captação de recursos. Mas tem muita inspiração ali, sim. Como as cenas no cemitério, ou no barco, ou quando ele chega em casa. Enfim, tem muito ali.
Foi um verdadeiro mergulho, pelo jeito.
Quando fomos para Sorocaba, onde ocorreram as filmagens, tava levando uma equipe tão bacana que queria que a cidade inteira aproveitasse. Então prometi que, quem quisesse, poderia participar do filme, mesmo a gente tendo apenas dois personagens de destaque. Poderiam participar de um ou mais dias de filmagens, mas, para isso, teriam que ler o roteiro antes. Queria figurantes inteligentes. E teriam que ler o livro do Henry James, também. Ou seja, desse jeito, toda a figuração estava, também, imersa na história. Tanto que um menino de dez, doze anos acabou alterando meu roteiro final. Ele deu uma ideia de conversar com alguém, numa cena em que eu apenas olhava de longe. E acabei aproveitando. Tudo isso me fez optar por esse processo mais colaborativo.
Você citaria outras referências mais contemporâneas?
Claro, com certeza. Gosto muito daquela trilogia Jesse e Celine –Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013) – que acho que tem muito a ver com o nosso filme. Gosto ainda de um filme do Truffaut, chamado O Quarto Verde (1978), que também é baseado no Henry James. E aquele aspecto mórbido conversa muito com o que fizemos aqui. Afinal, o meu personagem começa a ficar louco com a mulher quando ela já está morta, embaixo da terra!
Você e a Eliane Giardini possuem uma parceria não apenas profissional, mas também de vida. Como se dá essa conexão entre vocês?
Bom, nós fomos casados 25 anos e temos duas filhas. Logicamente, tudo isso nos aproxima. Embora seja claro que uma parte da nossa vida foi de uma maneira, e agora é de outra. Sempre tive uma relação muito forte com a Eliane. E não é a primeira vez que interpretamos um casal também na ficção. Já fizemos em novela, no teatro. Mas esse filme é especial. Tenho uma satisfação muito grande por tê-lo feito. E por ter sido com ela torna tudo ainda mais importante. Pois há por trás algo muito forte. A nossa relação anterior oferece uma outra tessitura ao filme. Tem uma hora que a personagem dela diz: “você fala como se tudo já tivesse acontecido. Mas nós temos um passado atrás de nós”. Esse diálogo quase caiu na edição, mas fiz questão de deixar.
Imagino que o processo de edição tenha sido bem complicado.
Você não faz ideia do quanto. Foi bem complicado, mesmo. Pois haviam muito mais diálogos. Nosso trabalho foi preservar a palavra, mas estimular uma experiência mais dinâmica. É muito difícil cortar Henry James. Pensando nisso, procuramos aquecer o filme com algumas historinhas paralelas, com o improviso que fizemos durante as filmagens em relação à lua. Isso me deixou particularmente feliz. Com o eclipse da lua cheia. Criou-se dois momentos interessantes, associando esse fenômeno à questão dele ser meio orientado pela lua, de achar que algumas coisas estão no colo dos deuses, e por aí vai. O fato de ambos serem professores de literatura foi uma criação nossa. Tudo isso fez desse filme um OVNI. Mas gosto de OVNIs. Até a citação do Trópico de Capricórnio, que ninguém vai perceber, mas está lá. Gosto assim.
A Fera na Selva é dedicado ao José Wilker, que foi um grande parceiro teu. Como surgiu essa oportunidade de homenageá-lo?
Não foi uma mera vontade de referenciá-lo. Foi, acima de tudo, porque o Wilker também tinha uma ligação muito profunda com esse texto. Ele foi o primeiro diretor que a Eliane convidou para esse projeto. Eu seria apenas o produtor. Ele tava envolvido direto, tanto na peça, quanto no cinema. Gostaria muito que ele tivesse sido o nosso narrador. Tenho muito orgulho de tudo que vivi ao lado dele.
Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2017
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