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Na 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, um dos nossos filmes preferidos foi o suíço A Garota e a Aranha (2021), dirigido pelos irmãos Silvan Zürcher e Ramon Zürcher. Os diretores partem da premissa de duas amigas que costumavam dividir um apartamento, até Lisa (Liliane Amuat) decidir se mudar para um espaço próprio. A trama se foca em Mara (Henriette Confurius), que permanece no local enquanto caixas de papelão circulam pelos corredores e objetos são carregados para a mudança. Enquanto isso, desenvolve sentimentos confusos quando à colega. Leia a nossa crítica.
Aos poucos, os cineastas criam uma ciranda de personagens entrando e saindo dos imóveis em transformação (o novo e o antigo), conhecendo-se, apaixonando-se e se separando. Enquanto isso, aranhas, cachorros, gatos, moscas e pássaros ocupam uma função particular. Considerado pelos autores um “poema cinematográfico”, o drama venceu os prêmios da crítica e de melhor direção na Mostra Encontros do Festival de Berlim. O Papo de Cinema conversou com a dupla sobre o projeto:

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Os irmãos Ramon Zürcher e Silvan Zürcher no Festival de Berlim

O filme apresenta uma ciranda de afetos sugerida apenas pelos olhares. Como chegaram a esta proposta?
Silvan Zürcher: No começo, não era claro para nós que seria um filme sobre desejo e afeto. Sabíamos apenas que seria um filme sobre uma personagem se mudando de um apartamento para o outro. Conforme desenvolvemos a história, percebemos que o interesse se encontrava nessa dinâmica sobre o desejo de possuir uma conexão com alguém, a dor da separação, e a divisão de unidades de afeto. Surgiu então a ideia de dividir este espaço em paredes e cômodos, inclusive pelas portas dos outros apartamentos. Isso representa a separação. Quisemos fazer um carrossel de desejos, com personagens desejando uns aos outros, embora o sentimento não fosse recíproco. Mas isso formava um círculo. Isso também diz respeito à comunicação: era importante criar uma atmosfera onde os personagens demonstrassem seu afeto em diálogos, mas sentissem que a fala não basta para expressar o que sentem. Pelo contrário, quanto mais falam, mais solitários se sentem. São indivíduos isolados.
Ramon Zürcher: As primeiras versões do roteiro pareciam um esqueleto, apenas a arquitetura do que aconteceria, mas não tinham a carne, a substância que viria da psicologia dos personagens. Introduzimos a construção do desejo na forma de costura dos relacionamentos. Então, isso se tornou o coração pulsante do filme: é um universo de separações. A partida de Lisa do apartamento aborda a necessidade de se conectar com alguém. Queríamos construir um espectro queer do desejo, da heterossexualidade à homossexualidade, com personagens fluidos nesse espectro. Mara não é hétero nem lésbica, apenas. Ela habita um universo fluido onde os personagens podem mudar. É um universo queer. Não problematizamos isso, apenas narramos de maneira muito natural. A sexualidade não é motor de conflito, apenas uma manifestação casual.

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Essa naturalidade se estende à representação dos corpos: existe a nudez frontal do garoto, e a menina que nunca usa roupas. Os corpos são livres.
Ramon Zürcher: De fato, Nora e Jan estão nus com frequência. Para Nora, esse é um dos aspectos principais da personagem: ela está sempre nua, e não tem uma pele para protegê-la, no sentido metafórico do termo. Por isso, ela adora a escuridão do quarto, e troca o dia pela noite. A nudez se tornou uma parte essencial da construção da personagem, ao invés de um efeito chocante ou espetacular. É algo orgânico para ela. Quando a atriz leu o roteiro, ela se identificou bastante com a personagem por isso. Lea Draeger parecia uma possibilidade para interpretar tanto Nora quanto Kerstin. Ela mesma disse que se sentia mais próxima de Nora, e tivemos certeza de que ela seria a atriz perfeita para o papel. Lea é uma atriz de teatro, que fica nua com frequência em cena, então isso não era um problema para ela. Mesmo no set, ela andava nua em diversas ocasiões. Foi algo casual. Além disso, sempre tivemos um respeito pelos corpos: nas cenas de nudez, retiramos o display e reduzimos a equipe, para os atores não se sentirem vulneráveis. Criamos um espaço seguro para que os atores tivessem apenas os técnicos essenciais perto deles. Foi algo descontraído, sem problemas.
Silvan Zürcher: Para Jan, nós usamos um dublê para a nudez explícita. Flurin Giger nunca se sentiu exposto, porque aquele pênis não era dele.

Os personagens têm histórias complexas uns com os outros antes de a trama começar, mas isso fica subentendido. Trabalharam este aspecto com o elenco?
Ramon Zürcher: A base era apenas o roteiro. Quando encontramos esses atores, chegamos a cogitar as histórias pregressas, para que eles tivessem suas ideias próprias a respeito dos personagens, construindo as motivações. Mas nunca construímos esta história paralela juntos. Cada ator tinha sua fantasia. O conceito do filme era a proposta de um alienígena chegando à Terra pela primeira vez, precisando de orientação. Existem sinais nesse sentido: a mulher mais velha pode ser a mãe de Lisa, mas nunca se sabe ao certo. Buscamos uma narrativa fenomenológica, onde existem sentidos que o espectador pode interpretar à sua maneira. Muitos filmes começam apresentando o nome dos personagens e dizendo suas funções: esse é o marido, essa é a mãe, esse é o vizinho etc. Nós não queríamos algo tão claro assim. Apenas fornecemos alguns indícios, e ao longo do filme, o espectador começa a construir seu mapa de afetos e relações. É como um quebra-cabeça com as peças espalhadas: cabe ao espectador montar a história. 

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Os animais são fundamentais na história: além da aranha, há gatos, cachorros, moscas e pássaros que se relacionam de maneira curiosa com os personagens. Como chegaram a essa escolha?
Silvan Zürcher: Nós não os concebemos num plano simbólico. Não queria buscar significados por trás dos animais: a aranha não tinha um significado específico, por exemplo. As coisas são o que são: a aranha é uma aranha, nada mais transcendental do que isso. Gostamos de usar os animais para associações que os espectadores podem compreender, em chave aberta de interpretação. Para mim, era interessante ter a aranha, um animal que constrói teias, enquanto o filme, em sua estrutura dramática, também tece teias entre personagens, locais e diálogos. Nossa história não se desenvolve de maneira clássica, e sim como uma teia de aranha. Gostamos de incorporar a aranha por este aspecto. Tematicamente, sabemos que isso diz respeito à efemeridade dos relacionamentos, embora algo sempre permaneça. Quando a aranha termina sua teia e vai embora, fica a teia ali, como indício. A protagonista é Mara, que tem um sonho de liberdade e de nova vida. Ela está em crise, buscando algo diferente de sua situação atual. Existe o fator de que as aranhas possuem dentro de si mesmas os recursos para criarem uma nova casa. Elas são independentes, o que nos interessava em associação com Mara. Este filme é a segunda parte de uma trilogia: o primeiro foi A Gatinha Esquisita (2013), e o terceiro será The Sparrow in the Chimney. Para nós, esta é a trilogia dos animais, embora seja sobre relacionamentos humanos e fenômenos psicológicos. Mas faz sentido para nós pensar no projeto como a trilogia dos animais, e na maneira como se associam.
Ramon Zürcher: A Gatinha Esquisita era uma peça de câmera, passada quase inteiramente num apartamento. Era o retrato de uma família, com foco na mãe, que vivia o cotidiano como uma prisão. O gato, enquanto animal doméstico e domesticado, era interessante por vir de um passado selvagem. Quanto à aranha, gosto que ela seja sempre usada nos filmes de terror, porque muitas pessoas têm medo de aranhas. Queria evitar esse clichê, e usar o animal enquanto algo frágil, capaz de ternura e delicadeza. As patas andando sobre o braço de Mara são quase como uma carícia, uma dança. Quando elas passam a aranha de um braço ao outro, isso reflete a intimidade entre eles, a extensão dos corpos. The Sparrow in the Chimney vai se focar na utopia. Os dois filmes iniciais eram sobre clausura, e o terceiro será utópico, com o pássaro que voa a partir da chaminé, um lugar de fogo e explosões. A partir desse fogo, novas coisas podem nascer. Os animais não são usados de maneira simbólica, apenas associativa.

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O filme privilegia os planos fixos com vários personagens em cena ao mesmo tempo. Como isso foi trabalhado?
Ramon Zürcher: Alguns desses planos já estavam estabelecidos antes do início das filmagens. Isso nos ajudava a visualizar, e já partia do roteiro, quando escrevemos tudo em duas cores: preto e verde. As indicações em preto dizem respeito ao que veremos na tela, e em verde, estão marcações fora de tela. Algumas ações e diálogos ocorrem fora de quadro, sendo percebidas apenas pelos sons. Por isso, o roteiro já ajuda a visualização. Também marcamos onde gostaríamos de cortar, e onde cada plano começaria e terminaria. A segunda fase de visualização foi um storyboard clássico, que não conseguimos finalizar até o início das filmagens porque ainda havia muito a fazer. Fizemos marcações no chão para indicar o posicionamento dos atores e da câmera. Antes de cada cena, discutíamos o conceito de mise en scène, e como gostaríamos que funcionasse idealmente. Mas nem sempre fizemos assim: ajustamos de acordo com as necessidades, no caso de ideias que não funcionavam tão bem. Decidimos que a câmera estaria sempre estática, e o único movimento viria da mise en scène. Esse era o conceito principal que guiou nossas escolhas.
Silvan Zürcher: Também era claro que não queríamos trabalhar com stablishing shots, nem planos abertos demais. Privilegiamos os planos mais fechados para dar a ideia de quebra-cabeças na cabeça dos espectadores. Queria tratar o espaço de maneira diferente do clássico, ou seja, nada de defini-lo primeiro, e depois criar orientações de movimento. Decidimos pela abordagem fenomenológica, indo por partes. Com o passar dos eventos, o espectador começa a definir mentalmente a geografia dos espaços. Apesar de haver diferentes andares nos apartamentos e nos prédios, às vezes se perde a orientação. Não se sabe mais em qual apartamento os personagens estão. É como um labirinto. Os planos próximos dificultam compreender o espaço no sentido clássico. Para os atores, demos muitas orientações, já que a câmera não se movia. Por exemplo, quando andam de um ponto ao outro do cômodo, eles tinham um caminho preciso que precisavam fazer. No começo, parecia técnico demais, porque eles precisavam descobrir exatamente por onde andar, e para onde olhar. Os olhares são predeterminados. Somente na sétima tomada, as emoções começavam a aparecer. As primeiras tomadas eram frias, mais técnicas, e depois, quando os caminhos ficavam naturais e orgânicos para os atores, as emoções surgiam. 

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Ramon Zürcher e Silvan Zürcher no Festival de Berlim

A Garota e a Aranha foi exibido na Mostra tanto online quanto presencialmente. Como enxergam as diferentes percepções do filme nestes dois formatos?
Ramon Zürcher: Logicamente, o ideal seria a caixa preta do cinema. Como o filme não está em scope, mas numa janela mais estreita e quadrada, próxima do cinema clássico, a situação ideal seria projetá-lo num cinema que coloque uma máscara nas laterais da tela, para que a imagem seja o único foco de atenção. Às vezes, na exibição digital, ficam as faixas pretas digitais à esquerda e à direita, mostrando que se trata de uma imagem em vídeo. Prefiro as salas de cinema que fecham as cortinas sobre a parte preta das laterais, concentrando a atenção na imagem. O som precisa ser alto, para criar a melhor situação. Também gosto de assistir ao filme na presença de outras pessoas, o que me deixa mais concentrado. Assistir em casa é uma alternativa, mas a experiência audiovisual nunca tem a mesma concentração. As pessoas param, olhar o celular, vão ao banheiro, pegam algo na geladeira. Não é uma alternativa satisfatória. Fiquei feliz de saber que a Mostra teria sessões presenciais também, porque quando estou num festival de cinema, a exibição na sala de cinema é muito mais marcante. São essas que ficam na cabeça mais tarde. Quando assisto em casa, é algo fantasmático, menos sensual. Ainda bem que, em São Paulo, tenham exibições no cinema.
Silvan Zürcher: Quando você não tem o controle para pausar e voltar as cenas, a concentração é muito melhor. Nas salas de cinema é assim: você tem que estar preparado. Alguém inicia o filme, e a partir deste momento, não dá para pausá-lo. Nem faço questão de saber se o cinema está lotado ou vazio. Mesmo se tiver apenas uma pessoa na sala, a experiência será muito melhor e mais marcante. Concordo que a sala de cinema é a melhor maneira de assistir a um filme. A imagem é muito melhor neste caso.
Ramon Zürcher: Além disso, nosso filme não tem uma narrativa clássica. É um retrato poético, lírico, de Mara e de outros jovens. É um poema cinematográfico, mas não traz uma história linear em três atos. No caso de filmes alternativos ou experimentais, acho mais fácil se concentrar dentro da sala de cinema. Em casa, não temos a paciência necessária para esses filmes. Por isso, acho que blockbusters se adequam melhor ao cinema em casa, enquanto as produções independentes e autorais são mais apropriadas às salas de cinema.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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