Uma das mais premiadas – e populares – atrizes francesas da atualidade, Sandrine Kiberlain já fez de tudo, um pouco. Dona de dois troféus César (o ‘Oscar’ da França), marcou presença em sucessos populares como O Pequeno Nicolau (2009) e As Mulheres do Sexto Andar (2010), além de ter participado da série Dez Por Cento (2020). Agora, no entanto, está se aventurando no outro lado da câmera – atrás dela, para ser mais exato. Com o drama histórico A Garota Radiante (2021), em exibição nos cinemas brasileiros, estreou como diretora e roteirista ao narrar a trajetória de uma menina cheia de ideias e de forte veia artística. Seu problema, no entanto, é o ano em que se encontra: 1942, às vésperas da invasão nazista em território francês em meio à Segunda Guerra Mundial. Para falar mais sobre esse episódio e o que a inspirou nessa história, exibida no Festival de Cannes e premiada como melhor roteiro no Festival de Torino (Itália), a agora também cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, em uma conexão direta com o Brasil. Confira o bate-papo a seguir:
Olá, Sandrine. Prazer falar contigo. Como surgiu a ideia para A Garota Radiante?
Muito obrigado pelo carinho. Eu que agradeço por essa oportunidade, é importante para mim lançar esse filme no Brasil e ter a chance de conversar com vocês sobre ele. Bom, tudo começou com a vontade de fazer um filme, claro. Isso era algo que há tempos vinha rondando as minhas ideias, foi crescendo dentro de mim, até que não tive mais como adiar. Meu primeiro impulso foi trabalhar no roteiro, numa etapa que nem tinha certeza se seria eu mesma que assumiria a direção – o importante era que essa história fosse contada. Quando comecei, tinha poucas certezas. Sabia apenas que teria que ser de época, e sobre esse período específico, durante a Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista na França. Só que queria um olhar diferente a respeito desse momento. Não apenas mais um filme de guerra, se é que tu me entende. Queria falar da juventude, e sobretudo sobre a grande injustiça que foi interromper a vida e os sonhos de uma jovem de 19 anos, com tantas aspirações e desejos. É uma tragédia particular, mas que abalou toda uma nação, por todo continente. Parece algo menor, mas, para mim, era importante poder falar sobre essa situação.
O final de A Garota Radiante é de grande impacto, além de corajoso. Como você chegou a esse desfecho?
Sabe, é curioso você comentar sobre o final do filme. Acredite, tive que lutar por ele, para que fosse desse jeito. Os investidores, quem apoiou o projeto e colocou dinheiro para que acontecesse, foram relutantes quanto a esse desfecho, tentaram me convencer a mudá-lo, a dar ao filme um final mais convencional e resolutivo. Mas eu queria esse silêncio. Aquela tela preta diz tudo para mim. Há um certo incômodo, tanto a história quanto os espectadores ficam num estado de suspensão, sem saber ao certo o que aconteceu. Essa é a ideia, afinal, Irène também não sabe o que será dela. Nenhuma outra explicação seria necessária. Aquele corte brusco era também uma alegoria a respeito de como as coisas aconteceram, de fato, para tantas jovens como ela. A minha maior referência era Anne Frank. Quem lê o diário dela, que se tornou um fenômeno em todo o mundo, também não encontra um final bonitinho, com tudo explicado. E por quê isso? Porque foi assim na vida dela. Anne Frank estava ali, relatando o que lhe acontecia, até o momento em que é interrompida, em que a descobrem e a levam embora, sem lhe dar a chance sequer de deixar registrado um adeus. As páginas seguintes não existem simplesmente porque a Anne Frank não está mais lá. Exatamente como acontece com Irène.
Esse era o que tipo de reação que você esperava provocar no espectador, essa aparente confusão, sem saber ao certo o que teria ocorrido?
As reações do público tem sido as mais diversas. Muitos ficam surpresos com o que acontece, outros tantos se dão conta antes e começam a chorar. Há também os que já estavam emocionados pela jornada dessa menina, torcendo por ela. Era o que eu estava atrás, desse imaginário das pessoas, em compartilhar com elas. Para mim, resulta em uma experiência mais rica do que se tivesse feito de forma explícita, deixando às claras, sem possibilidade de entendimento além daquilo que está na tela. Essa foi uma lição que aprendi com Agnès Varda, que dizia sempre: “quanto menos você mostra, mais poderá dizer”. É bom provocar o espectador para que ele construa com você a história. Dessa maneira, cada um se sente também parte do filme.
O tema da Segunda Guerra Mundial volta e meia é resgatado pelo cinema. Qual a importância de seguir discutindo esse episódio da história recente da humanidade?
Sim, é um tema que foi tratado de diversas maneiras no cinema. Mas, ainda assim, segue importante, pois não pode, de forma alguma, ser esquecido. O nosso papel, dessa geração, é justamente contar o que aconteceu para os que vieram depois. Não se pode quebrar esse elo. Mas, claro, não dá também pra ficar sempre batendo na mesma tecla. Se faz necessário outros olhares, buscar novas formas de abordar o mesmo assunto. Essa obsessão, infelizmente, se faz cada vez mais atual diante de tudo que tem acontecido hoje em dia. Estamos vivendo um período de guerra, de ascensão de uma extrema direita irresponsável, do tolhimento de direitos que haviam sido adquiridos. É importante falar sobre antissemitismo. É importante falar sobre racismo. É importante falar sobre todas essas diferenças e as tragédias que nos abalaram.
Nós, no Brasil, reconhecemos a urgência de se fazer esse alerta contra líderes que estão atrás do poder a qualquer custo, figuras despóticas que falam apenas com alguns, ignorando o todo.
Sim, sei bem o que vocês estão passando por aí. E não é diferente da nossa situação na França, isso que vocês enfrentaram nos últimos anos está cada vez mais perto de se tornar realidade aqui também. Ou seja, o perigo é constante. Não se pode tratar como algo menor, pois não é.
O que a motivou a tomar essa decisão de estrear como cineasta?
Sempre quis fazer um filme. Era um desejo que tinha comigo há muito tempo. Não era uma necessidade de mercado, algo que me foi imposto, por exemplo. Era uma vontade, antes de qualquer coisa. Não foi por falta de papéis ou de convites para seguir atuando como atriz, pois, felizmente, a minha agenda está cheia e não devo parar de aparecer em frente às câmeras tão cedo (risos). Assim como outras atrizes, tinha esse anseio de me arriscar, de me testar fazendo algo novo, diferente do que havia feito até então. Mas ao contrário do que geralmente acontece, de intérpretes que passam a dirigir para criar personagens para si mesmos, essa não era o meu caso. Tanto é que nem apareço em cena em A Garota Radiante, por exemplo.
Em um dos melhores episódios da série Dez Por Cento (2015-2020), você aparece como uma versão de você mesma, mas como uma atriz insatisfeita, que busca novos desafios. Há nisso um paralelo com a sua vida real?
Bom, mais ou menos. Que curioso você citar o Dez Por Cento, pois foi apenas um episódio que participei, e já faz alguns anos. Mas foi uma experiência tão gostosa. Adorei ter feito parte da série. Foi divertido, há humor nesse seriado, e gosto de exercitar esse “músculo” em mim. Acabo fazendo muitos dramas, e ter a oportunidade de rir em cena sempre é bem-vinda. Porém, é um humor que vem da situação (em Dez Por Cento). Aquela Sandrine que apareceu na série é ansiosa, sempre preocupada, e não sou nada assim (risos). Outra coisa importante que precisa ser esclarecida: nunca fiz stand up, e nem quero (mais risos). Mas ter a perspectiva de poder rir de si mesma, do meu estado de espírito, foi muito boa.
Como imagina que o espectador brasileiro irá reagir ao A Garota Radiante?
Antes de mais nada, acho importante dizer o quão feliz estou desde que fiquei sabendo que o filme havia sido adquirido por uma distribuidora brasileira e que está sendo lançado por aí. Quando comecei a pensar nessa história, nunca imaginei que pudesse ir tão longe. Agora, também preciso confessar uma falha no meu histórico pessoal: não conheço o Brasil, nunca estive nesse lugar que me parece tão mágico e do qual só ouço falar coisas incríveis. Adoraria ter ido, tanto a passeio como em um dos lançamentos dos meus filmes, mas sempre houve uma questão de data, alguma coisa que acabou impedindo esse trânsito.
O cinema também é uma forma de se visitar um lugar. O que você conhece do cinema feito no Brasil?
Sobre o cinema brasileiro, também acredito não ter visto muita coisa. Porém, algo que sempre me chamou atenção é a entrega dos atores brasileiros. Sabe, são atuações verdadeiras, que sabem comover sem apelar. Sobretudo nas mulheres. Penso nisso também como um fator positivo para o meu caso, afinal, estou lançando um filme com uma protagonista feminina em um país de tantas ótimas atrizes. Talvez seja um link positivo. Certa vez encontrei, por acaso, o Walter Salles, aqui na França, e claro, havia assistido ao Central do Brasil (1998), que é um filme incrível. Maravilhoso mesmo! Adoraria que ele assistisse ao meu A Garota Radiante. Será que iria gostar? Vou ficar na torcida!
(Entrevista feita via zoom, entre Brasil e França, em março de 2023)
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