Na edição 2021 do Festival de Locarno, o curta-metragem brasileiro A Máquina Infernal (2021) levou uma visão perturbadora do Brasil contemporâneo às telas de cinema europeias. No filme, os operários de uma fábrica próxima da falência começam a perceber uma presença estranha dentro do edifício. Enquanto lutam por seus direitos trabalhistas, são diretamente afetados pelo mal misterioso. O elenco traz Carolina Castanho, Glauber Amaral, Renan Rovida, Carlos Escher, Talita Araújo e Maria Leite nos papéis principais.
O diretor Francis Vogner dos Reis se apoia no realismo social e no horror para retratar um processo de desumanização – leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta, curador e pesquisador sobre a importância do cinema de gênero na produção brasileira atual, o papel dos festivais de cinema internacionais e a criação de um inimigo invisível em imagens:
Como concebeu o espaço da fábrica, entre o naturalismo e a fantasia?
O espaço era muito importante para a gente, porque determinou o filme que fizemos. No roteiro original, a fábrica funcionava normalmente. Ela enfrentava a automação do trabalho, e os personagens se tornavam vítimas daquele mal, mas não era uma fábrica em vias de falência. A fábrica era mais asséptica no roteiro original. Eu conhecia aqueles espaços em São Bernardo do Campo e Diadema, mas estou longe de São Bernardo há quase 10 anos, e minha família não trabalha lá há 17, 18 anos. Quando fizemos a pesquisa de locação, percebemos que as fantasmagorias da realidade eram muito mais graves do que aquelas do filme. Sentimos o medo das pessoas em perder o emprego, depois de 30 anos de trabalho, e outras que morreram esperando a rescisão que nunca chegou.
Encontramos uma fábrica Karmann-ghia que tinha quebrado. Os operários ocuparam o espaço, mas os donos não apareciam, nem assumiam a responsabilidade. A situação bizarra de quem era o dono foi matéria de jornal. Os trabalhadores montaram uma cooperativa, e alguns morreram enquanto esperavam a rescisão. Com o processo judicial, um dos donos apareceu. Se eu colocasse isso num roteiro, diriam que é exagero, mas era um Orleans e Bragança! Realmente um fantasma que volta do passado para recuperar a fábrica e travar uma briga.
As pessoas vagavam pela fábrica destruída, esperando pela decisão da justiça. Foram tiradas de lá, e ficaram todas desempregadas. Tive que voltar ao roteiro por isso: eu me dei conta que a realidade era muito mais assustadora. Encontramos uma fábrica em Ribeirão Pires que aceitou as filmagens, mas deu para trás dez dias antes das filmagens. Encontramos esta outra fábrica menor, em Diadema. Ela era incrível, porque parecia uma caverna. Era muito diferente do que eu tinha imaginado. Fui com o fotógrafo, a fotógrafa e o diretor de arte. Estudamos o espaço e isso determinou muito as escolhas do filme.
“Tive que voltar ao roteiro por isso: eu me dei conta
que a realidade era muito mais assustadora”.
Os planos enviesados, meio bressonianos, já eram um desejo, mas as outras fábricas não nos davam isso da mesma maneira que essa pequena metalúrgica. Ela estava em crise: algumas partes funcionavam, enquanto as outras ficavam escuras. Trabalhamos no fim de semana, e a fábrica vazia era assustadora pelos sentimentos misturados: é uma fábrica antiga, escura, em pleno início de 2019, o que deixava todos muito tensos. A desindustrialização radical pela qual o ABC passou era grave: os sindicatos não puderam nos ajudar, porque estavam atarefados com tantas demissões. Ninguém sabia o horizonte que teriam dentro de seis meses.
No começo do roteiro, era algo como Trabalhar Cansa (2011): o fantástico vinha de uma fenda na parede. Mas decidimos que a fantasmagoria tinha que se espalhar pelo espaço. Ela não podia estar concentrada numa fissura, num buraco, e sim dominar o espaço todo. A ideia de vir de cima nos pareceu interessante porque a fábrica tem um espaço panóptico: o chefe observa os trabalhadores de cima. Observando algumas pinturas, vimos na iconografia religiosa que olhar para cima equivale a olhar para o grande Outro que nos observa. Alguém me disse que a fantasmagoria do filme não era um monstro, e sim um Deus mau – afinal, Deus condena Adão e Eva à morte e ao trabalho na expulsão do paraíso.
Enquanto os trabalhadores se robotizam, as máquinas se tornam orgânicas. Os barulhos parecem uma deglutição. Por que optou por este caminho?
Decidimos que este monstro seria invisível, fora de quadro – ele seria um som, mas não teria imagem. O que evoca o tom assustador da fábrica são os sons dentro dela, e dos entornos. É uma caixa acústica de estranhamento – até o vento entra de maneira diferente. Pensamos neste monstro estranho, e também alienígena. Vi um canto da baleia Jubarte num vídeo do YouTube, e era tão lindo quanto estranho. Quando terminamos de filmar, eu ainda não sabia como seria o som. Falei com o Guile [Martins, diretor de som] que esse som precisaria ser construído entre o mecânico e o orgânico. Precisava ser um grande estômago. Ele criou variações, incluindo um apito eletrônico que ele captou numa caverna em Goiás, mas não sabe o que representa até hoje.
“A máquina te dá o sustento, mas também pode te matar. Ela não tem moral”.
As máquinas ocupam um espaço importante no imaginário da fábrica: quando alguém trabalha numa máquina durante muito tempo, a máquina se humaniza: quando o sujeito se aposenta, ele se despede da máquina e sente falta dela depois. Garotas do ABC (2003) tem um pouco disso: existe uma relação de ternura, e algumas máquinas chegam a ganhar nome. A máquina te dá o sustento, mas também pode te matar. Ela não tem moral – você precisa ter cuidado e respeito com ela. Enquanto a máquina se humaniza, tornando-se uma companheira, o ser humano se torna máquina, porque precisa funcionar no ritmo da produção. Mas nenhum desses elementos se anula: máquina e humano convivem de maneira muito forte. Quando uma máquina é consertada, o técnico faz um exame para entender de onde vem o problema. A convivência entre máquinas e humanos está no cinema desde o início do século passado. No filme, são máquinas gritando como corpos, e corpos quebrando como máquina.
Mas são corpos desejantes, com gozo e vida lá fora. Os personagens não perdem a subjetividade.
Eu não queria fazer um filme em que a gente reduzisse o grupo de trabalhadores da fábrica a sujeitos em vias de danação, absolutamente fragilizados, sem nenhuma pulsão de vida. É normal filmar as pessoas numa fábrica como variações de um robô esvaziado. Mesmo que as pessoas quebrem como máquinas, elas se conhecem, se apaixonam, se casam, transam, bebem juntas no fim de semana, descem para a praia e passam o fim de ano juntas, enterram aqueles que amam. A máquina mais forte do ser humano é a erótica, porque pode apontar para qualquer lado. Ela pode se dirigir a um objeto, uma pessoa, ou a ambos. Aqueles dois personagens trabalham juntos, mas existe uma identificação de mutilados: ela recebe um talho na testa, e ele perde uma mão. São vários níveis de relação e identificação.
O desejo tem disso: você extrai do outro aquilo que não possui, ao mesmo tempo em que se identifica com ele. Isso era necessário no filme: mostrar pessoas que não estavam ali apenas para satisfazer as necessidades básicas do trabalho e do estômago, mas do sexo também. A beleza e o prazer se dão em qualquer lugar. Uma mulher dá um amasso num cara no fim do expediente, e os outros dois transam no carro. É um respiro no filme. Não queria reduzir as pessoas a corpos alienados. Era importante ter encontros entre os trabalhadores, criando camadas entre amizade, trabalho, sexo e expectativa. Isso dá uma trégua à tragédia que viria depois.
Enquanto curador e pesquisador, como enxerga a safra de filmes políticos que passam pelo cinema de gênero, em especial o horror?
Eu gosto muito desses filmes, do Ramon Porto Mota, da turma do Vermelho Profundo, do pessoal do Filmes do Caixote, dos filmes da Gabriela Amaral Almeida. Eu não sei exatamente a que se deve isso, mas tenho algumas hipóteses. Primeiro, existe o repertório de uma geração nascida no fim dos anos 1970, ou nos 1980, que assistiu a filmes de terror com algo a dizer para além do susto. Eles Vivem (1988), por exemplo, me propiciou uma pedagogia política do olhar. Desde Kleber Mendonça Filho até Juliana Rojas, Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida, acredito que exista a mesma percepção de que o filme de terror revela tanto o inconsciente da indústria quanto de um tipo de sociedade. Eu via os filmes na adolescência, como Halloween: A Noite do Terror (1978) ou A Hora do Pesadelo (1984), e eram muito harmônicos à primeira vista. Mas nós logo suspeitávamos que essa harmonia era falsa, e cobrava algum tipo de preço. Acredito que, pelo que já conversei com esses cineastas, exista este aspecto.
Segundo, acredito que o horror, em determinado período da história, tenta elaborar aquilo que as categorias racionais não dão conta. O horror sempre lida com a catarse de alguma coisa para a qual ainda não se tem uma leitura satisfatória – ele desperta perplexidade por evocar algo que ainda não se domina. Drácula não é um monstro apenas porque chupa sangue, mas por ser um aristocrata que acorda no século XIX, em plena Revolução Industrial. Frankenstein é monstro ao olhar humano: o homem matou Deus e criou uma criatura que também vai matá-lo. Estes monstros trazem algo muito sofisticado, em plena Revolução Industrial. O horror tem a possibilidade de submeter o espectador a uma experiência. Ele fornece uma emoção que solicita uma tentativa de elaboração racional, enquanto te toma por completo, por meio do medo. É elucidativo se confrontar a isso, até porque o horror tem um aspecto muito físico.
“O horror sempre lida com a catarse de alguma coisa
para a qual ainda não se tem uma leitura satisfatória”.
Vi alguns casos destes aqui em Locarno. Os cineastas dialogando com o cinema de gênero, especialmente o horror, quando falam dos seus filmes, sempre falam de uma construção decorrente da experiência de viver em seu tempo, no seu país. Uma cineasta de Singapura fez um thriller de horror, e ela disse exatamente isso. Outros falam de linguagem e dramaturgia. Me pareceu que quem tentou trazer ao festival uma perplexidade diante do que viveu ou estava vivendo foram os diretores que trabalhavam no gênero. É claro que nem todos os filmes serão interessantes, e isso pode virar um álibi. Mas estamos vivendo em épocas difíceis de entender. Vi o filme do Abel Ferrara, Zeros and Ones (2021), que é um pesadelo, pior do que qualquer filme de horror. Você não sabe exatamente o que está acontecendo, e quando você tenta mapear, ao invés de explicar, passa a entender algumas coisas que estão em jogo. Esta também é a função do horror.
Os dois curtas brasileiros em Locarno giram em torno do apocalipse dos trabalhadores. Como enxerga o papel dos festivais para o cinema brasileiro em crise? Que representação do Brasil levamos aos eventos internacionais?
Essa é a primeira vez que estou num festival da Europa. Somos dois diretores brasileiros, eu e Leonardo Martinelli, na Europa, onde o lugar do cinema enquanto indústria e instituição é totalmente diferente do nosso. Inevitavelmente, a gente fala da destruição do cinema brasileiro, mas o público aqui raramente traz este debate, por ser muito diferente da realidade deles. Para a gente, é importante mostrar o filme, o que representa uma garantia de que vai circular, mas ao mesmo tempo, fazemos filmes para mostrar no Brasil. Fico muito feliz de passar o filme por aqui, e depois ele vai para outros festivais internacionais, mas enquanto cineasta apresentando um curta-metragem, sei que o impacto é muito pequeno. Mesmo no Brasil, eu busquei numa instituição o auxílio para a viagem, mas ela me respondeu que só ajudava os longas-metragens. O curta não é considerado cinema: ele “ainda” não é cinema; quem sabe um dia o diretor se tornará um cineasta, e seu trabalho se tornará um filme. Quem tem o poder financeiro não vê o potencial do curta.
Infelizmente, não temos longas-metragens aqui em Locarno este ano. Senti muita falta dos longas brasileiros aqui. O importante para nós, brasileiros, é tentar falar um pouco do que acontece com o cinema brasileiro. Não acho que isso vai ter grande efeito. Sinceramente, para os europeus, isso entra por um ouvido e sai pelo outro, porque eles não têm nenhuma responsabilidade pelo tema. A gente fala, todo mundo se sensibiliza, diz “É verdade, a situação no Brasil está complicada, né?”, e morre por aí. Prefiro ser realista: essa oportunidade não garante para nós continuidade de carreira, nem garante que o filme seja bom. Quando o filme é selecionado, a gente pensa: será que ele é bom mesmo, ou apenas responde a alguns anseios do cinema para exportação? Para mim, a única garantia nos festivais, neste período de um ou dois anos, é que o filme vai poder circular um pouco. Nós não somos muito ouvidos. Aqui na Europa, sinto uma afinidade muito mais direta com pessoas não-europeias – penso nos artistas de Gana, nos palestinos. Os olhares se procuram.
“Quando o filme é selecionado, a gente pensa: será que ele é bom mesmo,
ou apenas responde a alguns anseios do cinema para exportação?”
Estamos aqui como convidados, mas não é o nosso palco. Isso não é para a gente, mas não digo isso com pesar: esta é a cultura deles. O cinema por aqui tem uma continuidade. Um dos curadores me disse que meu filme era uma mistura e Elio Petri com Lucio Fulci. Foi o nível de diálogo que ele teve, e faz sentido – é a referência da Europa. Mas as perguntas sobre os motivos que me levaram a fazer o filme desta maneira me vieram de pessoas de fora da Europa. Às vezes a gente deixa de falar sobre a construção do filme e a poética do horror para falar só de Brasil. Alguns militantes do horror detestam a ideia de que o cinema de horror sirva de álibi para falar de outra coisa, mas no final, ele sempre se alimenta da matéria da realidade, seja o inconsciente, seja o social. Isso vale para O Bebê de Rosemary (1968), para O Exorcista (1973). Se formos apostar no purismo, a gente volta para os monstros da Universal.
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