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A Mesma Parte de um Homem :: “As mulheres são muito sozinhas no campo. Não existe a opção de pedir socorro”, afirma Ana Johann

Publicado por
Bruno Carmelo

Há anos, a diretora, roteirista e professora de roteiro Ana Johann vinha desenvolvendo o projeto de A Mesma Parte de um Homem (2021). Situada no cenário rural do Paraná, a história acompanha a vida de Renata (Clarissa Kiste) e Luana (Laís Cristina), mãe e filha que vivem em situação complicada quando perdem o marido e pai. Até o dia em que o misterioso Lui (Irandhir Santos) chega ao local e é acolhido pelas duas mulheres. Nasce uma nova e complexa relação familiar, escondida do olhar de todos.

O filme teve sua primeira exibição da Mostra Aurora, a principal seleção da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, de onde Johann saiu coroada com o prêmio Helena Ignez de destaque feminino. O Papo de Cinema conversou com a artista sobre esta mistura entre drama e suspense, repleta de imagens fortes e sugestões ainda mais perturbadoras:

 

A diretora Ana Johann

 

Por que escolheu um cenário interiorano do Paraná, ao invés de urbano?
Isso tem tudo a ver com a minha história. Eu nasci no campo e morei na Vila Rural até os 15 anos, sempre observando esta violência sutil, esta relação entre os papéis familiares. Esse filme poderia se passar na cidade, mas me interessa muito falar do campo, porque estas mulheres estão muito sozinhas. Na cidade existem delegacias, além de outras mulheres por perto. No campo, geralmente elas têm apenas o padre, e estão mais fechadas. Além disso, não existe a opção de pedir socorro. Por exemplo, eu já presenciei cenas fortíssimas de violência doméstica no apartamento ao lado do meu. Foi terrível enquanto eu tentava ligar para a polícia. Mas no campo, para quem você grita quando acontece algo assim?
Eu também queria trazer o lugar do campo, que eu ainda vejo pouco no cinema brasileiro dessa forma. Quando ele aparece, às vezes é de forma idílica, com paisagens maravilhosas, estetizantes, falando pouco sobre estas relações. Escuto pessoas que nunca moraram no campo me dizerem: “Nossa, o campo é um paraíso, as pessoas são boas”. Mas as pessoas são iguais em todos os lugares. Talvez elas sejam ainda mais fechadas no campo, além de ser um lugar onde as estruturas se reproduzem de maneira muito mais violenta. Inclusive, este filme se passa na região metropolitana de Curitiba, em São José dos Pinhais. Era muito importante a gente ter uma casa sem vizinhos, e foi difícil encontrar esse cenário.

 

Como você descreveria esse núcleo familiar antes da chegada do Lui?
Me interessa muito falar sobre essa ficção familiar, com as pessoas vivendo mentiras. A gente sabe que a maioria das relações é baseada em contratos culturais. As pessoas muitas vezes são guiadas por desejos que não são delas. Elas pensam: “Preciso ter um marido”, “Preciso ter um filho”. Esses lugares são muito doentes. As pessoas são infelizes, e mentem umas para as outras, criando esta ficção familiar. Antes da chegada do Lui, estes personagens já vivem uma configuração patriarcal: o marido tem um lugar certo à mesa, assim como esposa e filha. Com a chegada de Lui, eles subvertem essa fórmula e brincam com outra possibilidade de família, ainda que mantenham a mentira.

 

A Mesma Parte de um Homem

 

De que maneira preparou Irandhir Santos, Clarissa Kiste e Laís Cristina?
Este é um filme de atores, de mergulho em personagens. Já pensávamos nisso desde o roteiro. Acredito que o roteiro é vivo: nós tentamos preparar uma boa história, mas à medida que as pessoas chegam, é preciso deixar espaço para elas criarem. Gosto de trabalhar com gente criativa, que me desafia. Eu já estava trabalhando nesse projeto há muitos anos, e queria muito ouvir os atores. Cada um deles chegava com uma camada. Tivemos um preparador de elenco, o René Guerra, e trabalhamos três semanas, principalmente em pré-produção. Em outro filme, gostaria muito de separar esses momentos, porque é muito difícil, enquanto diretor, dar conta de muita coisa e preparar os atores. Durante a pré, quem preparava era o René, e eu comparecia em meio período. A gente fazia levantamento das cenas mais importantes, simulando tons e espaços.
Cheguei a levar as atrizes para conhecer aquele espaço. O único que eu não levei foi o Irandhir Santos, de propósito, porque os demais tinham uma relação particular com aquela casa. Eu e a Hellen Braga, diretora de fotografia, assumimos uma câmera na mão e uma luz montada a cada cena, além da luz de base no teto. Assim, a gente poderia ser mais móvel, como num documentário. Fizemos uma decupagem com os atores pensando onde estaria a câmera, o que cada um precisava viver. Muitas vezes eles desmontavam essa cena com ideias maravilhosas. Eles chegavam e falavam: “E se eu ficar naquele canto? E se eu fizer isso?”. Eu achava ótimo! Eles personificariam aquelas pessoas, e eu não posso suspender a crença. Para mim, o principal trabalho de um diretor é com os atores, garantindo que estejam bem naquele lugar. Então a gente adaptada, mudava a cena.
Em termos de seleção, o Antônio Jr. me sugeriu a Clarissa Kiste, que já tinha trabalhado em Ferrugem (2018), e eu adorei. O Irandhir Santos foi selecionado dentro de alguns nomes, e a Laís Cristina veio depois de um longo processo de seleção. Não existe ator criança ou ator adolescente. A gente sabia que teria que fazer esse processo de seleção. Ela tinha feito um pouco de teatro, e tinha até receio disso, porque muitas vezes uma pessoa mais crua é melhor, já que o cinema exige algo mínimo. Mas a Laís foi uma revelação. Ela entendeu muito bem o espaço dos cinemas, a importância dos olhares e da ambiguidade.

 

A Mesma Parte de um Homem

 

O filme é pautado pelo que se mostra e o que se esconde. Como determinou o que precisava ser visto pelo espectador?
Isso acompanha tanto o trabalho do roteirista quanto do diretor: é o que você decide mostrar e não mostrar. Sempre gostei muito desse cinema extradiegético, fora de campo. Enquanto espectadora, sou exigente. Não gosto de didatismo, não quero que me expliquem demais as situações. O que existe de mais rico no cinema é a ambiguidade das relações. Você escreveu na crítica do filme que nunca sabe se as pessoas estão prestes a se matarem ou a transar. Eu adorei, porque é isso mesmo. Sempre existe um jogo indireto nas relações humanas. Alguém nos diz algo e ficamos pensando em por que disseram aquilo, qual seria a real intenção. Tem um jogo muito corporal, e como eu estudo linguagem, sei que a pessoa pode falar alguma coisa enquanto o corpo diz outra coisa. Queria um filme muito intimista sobre as relações de poder.

 

De que maneira o projeto se insere nos códigos do suspense e do terror?
É interessante porque eu bebo de muitas fontes, não gosto de limitar. Nunca pensei o filme dentro de um gênero específico. Talvez, se estivesse que escolher um, eu dissesse drama. Eu já escrevi sobre isso: tenho horror a coisas muito explícitas, a muito sangue, muito corte, muitos corpos decepados. As pessoas estão acostumadas a ver isso, e nem sempre conseguem olhar para estas relações, para uma cena de sexo. Eu tenho uma escola que vem da natureza real, da tensão que este espaço me proporcionou na infância. Eu vivia num lugar como este na minha infância. Meu pai às vezes não dormia em casa, porque ele tinha um emprego viajando com um caminhão. A gente tinha uma casa de madeira, e eu dormia com minha mãe num único cômodo de alvenaria. Ela guardava uma espingarda embaixo da cama, e antes de dormir, ela revirava todos os quartos, passava os cadeados. Cresci com a sensação de que algo invadiria aquela casa, e percebia muitas mulheres com esta mesma sensação no campo.

 

A Mesma Parte de um Homem

 

A pandemia muda a percepção deste filme sobre clausura e medo do invisível?
É interessante, porque fiz esse filme num momento em que a gente nem imaginava que isso aconteceria. Mas acredito que que sim. Eu mesma olho para os filmes hoje de maneira diferente: quando as histórias têm festas, com gente se abraçando e se beijando, eu acho estranho. Penso que elas não deveriam estar lá, ao mesmo tempo que eu também gostaria de fazer isso. Fico com uma sensação confusa diante de cenas de multidão. A impressão de clausura no filme pode ser piorada, agora que estamos há muito tempo em casa. Na China, por exemplo, a quarentena trouxe um aumento no número de divórcios, porque muitas vezes as pessoas estão nessas relações, mas não ficam em casa, não convivem tanto uma com a outra, então os problemas vão passando. Quando precisaram realmente ficar juntas, perceberam que não era mais possível conviver. Ao mesmo tempo, a gente mostra uma casa no campo, o que é diferente de estar numa cidade, com vizinhos ao lado, e pegar um elevador, por exemplo.

 

O cinema brasileiro vive tempos difíceis com o desmonte cultural, e a pandemia complicou a situação. Como vê os caminhos para este filme em festivais e salas de cinema?
A gente tem que parar para refletir sobre esse momento. O que já vinha acontecendo paulatinamente agora se produz de maneira muito mais rápida. A gente já via a migração para o streaming e o online, mas a gente podia ficar na rua, à vontade. Naquele contexto, a sala de cinema se sustentaria do mesmo modo por muito tempo. Agora, o número de assinantes das plataformas de streaming aumentou bastante. Por um lado, sinto falta deste afeto, inclusive em Tiradentes. Por outro lado, essa é a primeira vez que lanço um filme desta maneira, e vivi toda a expectativa como se estivesse de fato num festival, esperando a noite de estreia, acompanhado o que os críticos falariam do filme. Na medida que lanço o filme, ele não é mais meu. Vai depender de como as pessoas interpretarem, especialmente neste filme em que eu deixo espaço para várias leituras.
Acredito que, daqui pra frente, os festivais têm que ser híbridos, porque mais pessoas podem participar. Os festivais devem continuar existindo presencialmente, claro, mas com o online em paralelo. Enquanto roteirista, estou escrevendo para projetos de séries no streaming: é onde a gente tem trabalho. É triste ver que isso não é regulamentado no Brasil. Tem mercados que determinam que tal canal precisa investir tal quantia, mas aqui é uma terra sem leis. A pandemia interrompeu diversos projetos, mas o maior problema é a questão das políticas públicas. Já entendemos o funcionamento desse vírus: sabemos que em breve vamos voltar e nos adaptar. O problema é o que tem sido feito da indústria do cinema. Fiz meu primeiro filme em 2007, pós-retomada Collor. Era um momento difícil, quando eu precisava escrever o projeto, dirigir, editar, mandar para os festivais. Não existia a noção de mercado. Não se levava projeto para uma produtora, nem havia política de cotas. Tudo isso estava sendo pensado, e sabemos que isso não se faz do dia para a noite.
Por uma questão simplesmente de capricho, este governo decide interromper as atividades porque não gosta do que os artistas pensam dele. Mas em termos de indústria, somos fortíssimos. Saíram pesquisas apontando que, desde 2017, a indústria audiovisual estava maior do que as indústrias automobilística e farmacêutica. A sala de cinema vai continuar existindo, mas de maneira diferente, cada vez mais específica. Vamos ter que repensar muita coisa. Vi a estreia desse filme na TV de casa, e o Chromecast não estava regulado. Sofri ao ver a qualidade. Se fosse na sala de cinema, todo o trabalho de claro e escuro seria diferente, além do som. Ao mesmo tempo, estou feliz de saber que muitas pessoas que estão vendo o filme não o veriam em outras circunstâncias. Tenho recebido mensagens de mulheres que se identificam com a Renata, o que é muito gratificante.

 

A Mesma Parte de um Homem

 

De fato, o projeto tem uma equipe bastante feminina.
Temos 60% de mulheres. Não quis excluir os homens, porque acredito no diálogo, mas sentia que tinha que dar espaço para as mulheres. Muitas delas tinham muita experiência, mas não tinham recebido a oportunidade de chefiar uma equipe. Não tivemos apenas mulheres trabalhando, mas ocupando a posição de chefes de equipe, porque neste caso, elas têm a liberdade de se manifestar. No cinema, a gente incorpora esta hierarquia de papéis da indústria. Acho que os processos são positivos, mas não precisamos ser grosseiros para trabalhar com as pessoas, e achar que isso funciona. Muitos diretores ficam gritando no set, achando que têm razão em tudo, sem dar oportunidade de escuta. Promovi muito a escuta nesse filme, para incorporar o olhar delas. Foi maravilhoso.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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