A baiana Helena Ignez é um dos maiores expoentes do cinema brasileiro. Figura incontornável de movimentos vanguardistas como o Cinema Novo e o Cinema Marginal, contribui à nossa cinematografia em diversas frentes. Primeiro, como um de seus rostos mais conhecidos. Ela corporificou as emblemáticas Janete Jane, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), Ângela Carne e Osso, de A Mulher de Todos (1963), e Sônia Silk, de Copacabana Mon Amour (1970), entre tantas outras. Antes isso, encarnou Mariana, de O Padre e a Moça (1965). Sua lista de êxitos como atriz, também na seara teatral, é vasta e expressiva. Na condição de realizadora, Helena carrega a verve “udigrúdi”. A influência do falecido Rogério Sganzerla, com quem foi casada, é evidente. Alguns dizem que Helena mantém viva a chama daquele cinema desbragado e vibrante. Agora, ela chega ao circuito comercial com A Moça do Calendário (2017), baseado num roteiro de Rogério, protagonizado por André Guerreiro Lopes e Djin Sganzerla, sua filha. A artista gentilmente nos atendeu por telefone para este Papo de Cinema exclusivo que você confere agora.
Helena, para muitos você é a centelha viva do chamado Cinema Marginal. Como isso te parece?
Acho engraçado. Hoje mesmo falei sobre isso de Cinema Marginal. Não acredito que a produção daquela época seja marginal. É um cinema experimental, de invenção que, às vezes, tem dificuldade de produção. Mas ele é essencialmente atuante, muito vivo. Respondendo diretamente à sua pergunta, me vejo realmente como uma centelha disso. Alguma coisa se acende quando aparecem esses filmes, assim que eles surgem na tela.
O que te atraiu no roteiro do Rogério Sganzerla, ao ponto de você querer realizar o filme?
A dubiedade da moça foi a primeira coisa que me chamou a atenção. Ao contrario do que se pensa, ela não simplesmente atrai os homens. O faz por militância, para falar da reforma agrária, por exemplo. Já no que diz respeito ao Inácio, o personagem masculino, o isolamento, a solidão, suas tintas existenciais me atraíram. Ele é meio solitário, perdido, indefinido politicamente, bem como na própria vida. É um homem frágil e isso me interessou. E ele acabou diferente do que fora escrito anteriormente, essa vulnerabilidade foi surgindo no processo.
As discussões políticas que perpassam o longa, com a consciência do proletariado, a luta de classes, já estavam no roteiro original? Você acabou mexendo no texto?
O filme sequer foi lançado, e já recebi propostas de estudo sobre as diferenças entre as 13 páginas em que me baseei e o roteiro final. Um homem pediu, nos anos 80, para que Rogério escrevesse um roteiro com base em alguns contos dele. Foi esse sujeito, inclusive, que trouxe o texto à tona novamente e me mostrou. Rogério era extremamente organizado, tanto que seus escritos estão todos catalogados. Mas esse estava solto. Para minhas filhas foi uma surpresa total. Elas trabalham com a obra do pai, mas desconheciam completamente esse roteiro. Hoje em dia, o tal homem tem uma visão oposta à minha e a do Rogério. Há na gênese, portanto, uma contradição grande, pois o material original (os contos) era monstruosamente machista. Aquilo também merecia ser estudado. Rogério alinhavou algumas ideias, mas não o terminou, não deu muita bola para aquilo. Precisei de forças para jogar muita coisa fora. Embora seja complicado falar nesses termos, é como aquilo de Deus escrevendo certo por linhas tortas.
Em tempos como os nossos, você acha imprescindível a arte posicionar-se politicamente?
Querido, tenho ouvido muito sobre isso acerca deste filme. Estive recentemente no festival Queer Lisboa e os portugueses disseram que teríamos problemas no Brasil por conta do discurso de A Moça do Calendário. Me assusto com esses tempos em que vivemos. Acredito que meu filme seja extremamente atuante. Espero que não haja reações violentas, mas pode acontecer. Estranho que essa pessoa ligada ao roteiro em 1987 se tornou de extrema direita. Inclusive, tive de bloqueá-lo nas redes sociais porque ele veio com ameaças machistas. Vivemos num período horroroso. A direita a gente suporta, mas a extrema direita não. Racismo, machismo e violência, não.
Dá para dizer que A Moça do Calendário é, acima de tudo, uma ode ao amor como antídoto às crises que vivemos constantemente?
Ah, é exatamente isso. O amor é o que temos de mais revolucionário. Além de tudo, é algo dificílimo de manter. Para mim, este é um momento de auto-observação grande. Não quero retribuir com ódio e desprezo essas manifestações agressivas. Repito: o amor é, sem dúvida, o que temos de mais revolucionário. Mas é preciso reinventá-lo.
Você faz cinema há muitas décadas, já testemunhou várias fases da nossa produção. Como percebe o cinema brasileiro atual, especialmente essa demanda por diversidade?
Acho bem legal isso tudo. Tem gente muito boa dentro do cinema brasileiro, uma geração com vários talentos. As mulheres estão surgindo fortes, as mais antigas continuam potentes. Mulheres brancas e pretas juntas. Nesse sentido, é um momento muito bom. Temos de estar unidos, pois estão querendo destruir a gente.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo, em setembro de 2018)
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