César Troncoso é um ator essencialmente latino-americano. Nascido em Montevidéu, está acostumado a perambular pelos países vizinhos, construindo uma carreira sólida no teatro, na televisão, e, principalmente, no cinema do continente. Alçado à categoria de revelação pelo protagonismo em O Banheiro do Papa (2007), de lá para cá foi bastante requisitado, não à toa. Em A Outra História do Mundo (2018), o ator volta a trabalhar com o cineasta Guillermo Casanova, o mesmo de El viaje hacia el mar (2003), que marcou sua estreia em longas-metragens, aliás, a de ambos no formato. No novo filme, Troncoso interpreta Esnal, professor de uma cidadezinha do Uruguai. Ainda sob o jugo da ditadura-civil militar, ele resolve afrontar a autoridade de um coronel, pregando-lhe uma peça que resulta na prisão do melhor amigo e na urgência de burlar o governo local a fim de manter viva a memória do companheiro. Troncoso nos atendeu com a gentileza de sempre para este Papo de Cinema em que falamos sobre Esnal, as utopias e a necessidade de continuar falando de tempos nefastos para não tropeçarmos neles novamente.
O que, primeiro, lhe interessou no Esnal, o seu personagem?
Tem varias coisas. Meu primeiro longa-metragem, El viaje hacia el mar, foi dirigido pelo Guillermo Casanova. Na época, eu tinha 40 anos. Então, havia essa vontade de trabalhar com ele novamente. Guillermo sempre pensou em mim e no Roberto Suárez para esses personagens. Tem, também, a minha familiaridade com o autor do livro que serviu de inspiração, o Mario Delgado Aparaín. Já tinha lido algumas obras dele, mas não esta. Assim que me deparei com o roteiro, achei o enredo lindo. O que mais me chamou atenção foi isso do Esnal ir construindo outra História, com uma perspectiva diferente, fazendo tudo por amor ao amigo e solidariedade às filhas dele. A trama tem alguns elementos da comédia. É interessante mudar o ponto de vista normalmente utilizado para falar de ditadura.
Quais as principais diferenças que você sentiu entre a primeira e esta nova colaboração com o Guillermo?
Primeiro de tudo: os vários filmes que estão entre uma experiência e outra. Em El viaje hacia el mar não sabia muito bem o que estava fazendo. Tinha apenas participado um curta-metragem, além de peças de teatro. Mas, como você bem sabe, teatro e cinema têm a ver, mas são feitos de maneiras bem diferentes. Eu não tinha passado por esse processo de aprendizado da lógica, do jeito e da energia de trabalhar no cinema. Depois, fiz todo um caminho de conhecimento no ofício. Por isso, hoje tenho mais tranquilidade para construir os personagens. Normal, pois se vai ganhando segurança. É importante a continuidade que Uruguai, Brasil e Argentina tem me proporcionado.
Para você, qual a importância de explorar o tema da ditadura?
Lá no Uruguai tem uma frase universal, que foi usada no tempo da ditadura, justamente, pelo exército, ou seja, apropriada pelo governo: “O homem é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra”. Precisamos falar da ditadura exatamente para não tropeçarmos outra vez nela. Precisamos nos lembrar, sempre. Tem gente hoje em dia pedindo a volta dos militares, algo que seria um problema, não a solução. Muitas pessoas acham que a corrupção chegou num ponto que só a volta dos militares resolve. Esse tipo de filme é necessário para que saibamos as coisas que aconteceram. É preciso entender que o autoritarismo não vai resolver. Aliás, é também urgente continuar falando de ditadura porque há várias coisas não resolvidas daquela época. Basta ver que as Avós da Praça de Maio, na Argentina, continuam buscando netos desaparecidos. Gostaria de não precisar falar mais disso, mas é necessário.
O escritor Eduardo Galeano dizia que a utopia nos faz seguir caminhando. Podemos definir o Esnal como idealista e, portanto, um sonhador, alguém que persegue essa utopia?
De algum jeito, sim. Nunca pensei nisso, mas é uma possibilidade, certamente. Por um lado, os personagens do filme são aqueles que nunca ganharam. Eles são uma espécie de perdedores do dia a dia. Por outro, o problema essencial não é aonde você vai, mas de que jeito faz esses caminhos. O Esnal é um cara que tenta. Pode não conseguir, mas continua tentando.
O Esnal é como a Sherazade (narradora de As Mil e uma Noites), entretendo a mulher do coronel para sobreviver, ao mesmo tempo oferecendo ao povo um novo herói. Em sua opinião, o lúdico é um bom caminho para encarar a realidade?
A trama pode ser contada desse jeito porque acontece no fim da ditadura. Se fosse ambientada no começo, o tom precisaria ser dramático. Sempre se falou que a História é escrita pelos vencedores, e é mesmo. Ou pelos que ganharam ou por quem se adaptou aos novos tempos. No filme, o lúdico pode ter a ver com o fato dos personagens serem do interior. As ditaduras pegaram mais forte nos centros urbanos. O coronel e o carteiro, os vilões, não são o pior da ditadura. Isso permite a falta de respeito do Esnal. Sua capacidade de resistência tem a ver com inteligência. De algum jeito, o filme também fala da luta contra a ignorância. Esnal ganha a batalha por ter um pouco mais de informação. E isso configura o lúdico. Mesmo que ele tenha medo, é de sua natureza desrespeitar a autoridade. Essa é um pouco a função a arte, do cinema, a de ser desobediente, não fazer as coisas do jeito que todos fazem.
(Entrevista realizada por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo, em julho de 2018)
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