Laila (Navjot Randhawa) é uma pastora nômade nas regiões rurais da Índia. Segundo as tradições locais, é pressionada a se casar com um homem considerado apropriado pela família. Mesmo assim, não demonstra real interesse no pretendente, nem nos outros candidatos que insistem em conquistá-la. Ao longo de sete canções, a jovem apresenta com bom humor sua condição trágica de esposa e trabalhadora.
Este poderia ser o retrato da Índia contemporânea, mas provém de um poema do século XIV. A Pastora e as Sete Canções (2020) foi exibido pela primeira vez no Festival de Berlim, conquistando ótimas críticas pela beleza impressionante das imagens, das músicas e da mistura entre realismo e fábula. Agora, em exibição online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, pode ser visto pelo público brasileiro. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Pushpendra Singh sobre o filme:
A Pastora e as Sete Canções estreou no Festival de Berlim, presencialmente, e agora é exibido online na Mostra. Como compara as experiências?
Eu adoraria que o filme fosse visto na tela grande. Quando você olha para as imagens do filme, percebe que foram compostas para a tela grande, devido à presença das paisagens, da natureza, da pastora. Fico decepcionado com esta experiência, e no começo cheguei a rejeitar a ideia das exibições online. Depois percebi que não temos muita esperança de uma reabertura total dos cinemas antes de 2021, e acho melhor que as pessoas tenham a oportunidade de assistir ao filme. Essa é a parte mais importante. Se eu ficar esperando, será tarde demais. Ainda não conseguimos exibir na Índia, por exemplo, porque a situação sanitária aqui parece ficar pior a casa dia, não melhora nunca. O Festival de Mumbai tinha se programado para exibir o filme, mas foi cancelado este ano, o que é uma tragédia.
As relações entre homens e mulheres constituem um tema central do filme. Acredita que o retrato seja específico à Índia?
Percebo um grande movimento pela mudança em favor da igualdade, mas ao mesmo tempo, ele só reforça o quanto as coisas ainda precisam avançar. É a mentalidade dos homens que precisa mudar, e isso é algo do mundo inteiro, não apenas na Índia. É um problema global. O acesso à educação tem melhorado a situação específica da Índia, em comparação com vinte anos atrás. No entanto, isso ainda não é o suficiente. Cidades do sul, como Mumbai, são mais desenvolvidas de modo geral. Ainda existem numerosos casos de estupro, feminicídio e uma representação desproporcional de gêneros no norte do país, onde as famílias não querem filhas mulheres.
Por que decidiu adaptar um poema do século XIV ao cinema do século XXI?
Na Índia, a tradição popular e folclórica é muito forte. Os poemas desta época dialogam diretamente com problemas específicos do norte e do sul do país, e sempre fui muito influenciado pelo trabalho destes poetas. Meu último trabalho também foi derivado destas canções. Neste caso, agora na região da Caxemira, percebo que os assuntos abordados pelos poetas não mudaram, eles continuam mais atuais do que nunca. O peso da religião e a dominação masculina continuam muito fortes, e quanto pensamos que estão diminuindo, eles apenas se intensificam com a ascensão da extrema-direita. As religiões se tornam ainda mais restritivas, e por isso os poemas continuam relevantes.
De que maneira os poemas representam o estado de espírito de Laila?
O filme representa a jornada de Laila, em sua busca para encontrar amor, e depois conquistar seu espaço dentro da casa. Esta é uma luta real, e também uma busca espiritual. Busquei algumas canções, com a ajuda de Sadakkit Bijran, que interpreta o marido no filme. Ele é um cantor de música folclórica na vida real, e contribuiu para este processo. Ao mesmo tempo, por se tratar de uma personagem nômade, eu queria resgatar a essência da migração, combinando canções do Irã, Azerbaijão, do sul da Ásia e da Índia, claro. Assim, conseguimos transmitir a ideia de que delimitações não são necessárias, porque a música transcende as fronteiras.
Como trabalhou o tom com os atores entre fábula e realismo?
Eu trabalhei com pessoas reais, pastores reais, para trazerem naturalismo ao filme. Queria que esta mesma naturalidade viesse da atriz principal. Encontrei Navjot Randhawa, que já falava uma língua original muito próxima daquela que eu precisava para a trama. Eu sabia que ela aprenderia rapidamente se chegasse antes ao local e ficasse hospedada lá. Combinei com uma família de pastores para que ela morasse com eles durante algum tempo, e pedi que a fizessem trabalhar, buscando água, lavando as roupas no riacho, ordenhando os animais e percorrendo as montanhas, para se acostumar à personagem. Ela também estava muito interessada neste processo de ficar esse período com a família. Era preciso adquirir um novo tempo para os gestos e ações, típicos daquela região.
Não quis que o elenco trabalhasse a partir das referências clássicas?
Não dei nenhuma referência a eles. Tenho experiência em trabalhar com comunidades marginalizadas do meu país, e sei que possuo o ponto de vista de alguém de fora dessas vivências. Preferia que a própria comunidade se envolvesse no processo criativo com sua cultura local. A pesquisa vinha principalmente da realidade deles. Envolvi toda a equipe, do diretor de fotografia à equipe de direção de arte, no cotidiano dos moradores da região. A única referência que dei a estes últimos dois tem relação às pinturas. Jesus Cristo foi um pastor, e existem diversas pinturas relacionadas ao pastoreio, com uma tradição de Caravaggio e outros pintores que exploraram muito bem as paisagens.
As cores e os enquadramentos são impressionantes.
O diretor de fotografia, Ranabir Das, vem da mesma escola cinematográfica que eu. Estudamos essas pinturas juntos, para desenvolver um trabalho específico da representação das pessoas em relação às paisagens. Estas foram minhas principais fontes de inspiração. Passamos muito tempo juntos visitando as locações, vivendo o dia a dia naqueles vilarejos para explorar os arredores, tirar muitas fotos e discutir sobre cada cena. Eu adoto princípios específicos sobre movimentos de câmera em cada um dos meus filmes. Neste caso, como as árvores são uma inspiração, decidi que o movimento vertical seria interessante. Decidimos então incluir este movimento no filme.
Curiosamente, o filme sobre uma condição trágica está repleto de humor.
O humor vem destas lendas originais do Rajastão, que também já adaptei no anterior, que também estreou no Festival de Berlim. Pesquisamos muito para coletar estes contos. Propusemos então uma releitura, do nosso ponto de vista. Existe uma variedade humana impressionante no conjunto dessas histórias populares, que também evitam que o resultado se torne uma experiência intelectual demais. Eu queria que essa variedade estivesse presente no filme como um todo, e o humor faz parte das vivências cotidianas.
A indústria de cinema indiana abraça com facilidade produções independentes?
Não. Foi muito difícil produzir o filme. O cinema na Índia é uma atividade industrial: temos uma das maiores indústrias de cinema do mundo no momento. Mas não temos um sistema amplo de apoio federal – quando existem apoios públicos, eles são restritos a pouquíssimos projetos. Por isso, foi dificílimo financiar A Pastora e as Sete Canções. Consegui terminar as filmagens com um orçamento restrito, e fiquei muito estressado na luta em obter o suficiente para pagar o salário de toda a equipe e elenco. Isso durou mais de um ano. Em certo momento, abordei uma agência de fomento que rejeitou a nossa proposta, dizendo que não se encaixava nos parâmetros deles. Assim que fomos selecionados em Berlim, eles voltaram a nos procurar, para dizer que queriam o projeto. Se eles tivessem embarcado na produção mais cedo, minha vida teria sido muito mais fácil. Eu teria conseguido fazer mais promoção e preparado uma exibição mais ampla.
Diria então que a seleção em Berlim abre portas para a carreira comercial do filme?
Este deveria ter sido o caso, se não fosse pelo coronavírus. Tivemos respostas muito boas da crítica em Berlim, o que me encorajou. Também fomos selecionados em festivais de Nova York e outros eventos dedicados a novos diretores, por exemplo. Muitos lugares se interessaram pelo filme, e ofereceram a possibilidade de exibição, mas depois deste ano de suspensão, não devem chamar o mesmo filme novamente. Foi uma pena.
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