Sidonie (Érika Sainte) é uma mulher livre. Durante a adolescência, não se importa com o julgamento moral dos outros e guia sua vida afetiva como bem entende, saindo com diversos rapazes. Ela engravida e parte para Paris, longe da pressão conservadora. Quando a filha cresce, Sidonie aceita viajar à cidadezinha de suas origens para reencontrar os cinco possíveis pais da garota. Ao contrário da mentalidade local, esta mãe continua acreditando que deve viver segundo suas próprias regras.
A Poucos Passos de Paris (2018) é um filme tão leve quanto complexo, abordando a liberdade feminina sem didatismo. Em seu primeiro longa-metragem, a cineasta Virginie Verrier relata a dificuldade de viabilizar um projeto onde a mulher não precisa se casar com o príncipe encantado, nem se arrepender de sua vida sexual, para ser feliz. Ao conversar em exclusividade com o Papo de Cinema, ela relata o aspecto intervencionista e machista da produção de cinema na França.
Confira esta conversa sobre a comédia dramática disponível no Cinema Virtual:
Uma das primeiras exibições do filme ocorreu no Egito. Como foi a reação por lá?
Fiquei muito surpresa quando acompanhei o filme no Egito, não esperava por essa seleção. Depois encontrei o programador no Festival de Cannes, e ele me explicou que esta foi uma escolha provocadora mesmo. Existe censura por lá, mas fiquei comovida ao perceber a universalidade do tema. A maioria das mulheres usava o véu, incluindo francesas idosas e feministas que conheciam um Egito de tempos atrás, muito mais livre. Havia as jovens religiosas, e mesmo assim o filme foi recebido sem julgamentos. O público interpretou como uma janela para a França, para um comportamento específico. Isso me deixou bastante feliz. Os homens também vieram conversar comigo, e disseram que o aspecto mais comovente para eles foi a relação próxima entre mãe e filha, que não faz parte da cultura deles.
Por que queria situar a história longe das grandes cidades?
O filme se passa na região onde vivi a minha infância. Queria filmar lá, porque o norte da França tem luzes maravilhosas. Além disso, é um local pouco filmado, que eu conheço muito bem. Portanto havia um interesse pessoal: gosto de filmar as paisagens, as luzes. Digamos que este foi uma escolha artística e afetiva ao mesmo tempo.
Mas as relações entre gêneros e gerações são as mesmas entre Paris e as cidades menores?
Acredito que os julgamentos de uma pessoa em relação à outra são universais, seja na cidade ou no campo. Em qualquer lugar, as pessoas que tomam mais liberdades do que as outras serão julgadas pela maioria. Não vejo mais tolerância na cidade grande, apenas uma concentração maior de pessoas, o que faz com que estes casos sejam menos percebidos. Não vejo diferença entre os indivíduos, ou entre a humanidade na cidade e no campo.
Como criou Sidonie? Esta mulher libertária poderia estrelar numa comédia escrachada, mas você prefere a melancolia.
Criei Sidonie quando eu tinha 18 anos. Ela tem esse nome por causa da escritora Colette, ou Sidonie-Gabrielle Colette. Sempre criei as aventuras dela, que se tornou meu Antoine Doinel. Inclusive, escrevi pilotos de televisão com ela. Sidonie sempre foi uma personagem livre, que avança na vida sem se preocupar com o olhar dos outros. Eu defendo estes valores, e me identifico com eles. A minha história é bem diferente, mas no que diz respeito ao valor da liberdade, ela me representa. Trata-se de uma liberdade tanto para os homens quanto para as mulheres.
Como determinou o tom desta comédia contemplativa?
Não fiquei refletindo sobre isso, para ser sincera. Ela é uma mistura de malícia, humor e nostalgia. Esta é uma comédia humana, e para mim, bastante realista. Nunca parei para pensar nisso: apenas filmei da maneira que me parecia mais natural, com uma personagem humana que me interessava. Ao mesmo tempo, foi bem difícil fazer as pessoas aceitarem esta mulher, mesmo na França.
Sidonie é a exceção que confirma a regra no que diz respeito à liberdade feminina?
Acredito que em todos os países do mundo as mulheres buscam se emancipar, para além da igualdade de salários e de oportunidades. Ainda existem coisas que as mulheres não se autorizam a fazer. Uma jornalista me perguntou: “Você quer que todas as mulheres sejam como Sidonie”? Eu respondi que não, de modo algum. Apenas espero que todas as pessoas que se comportam como Sidonie sejam deixadas em paz. Eu queria mostrar que existem diversas possibilidades de levar a vida, e Sidonie foge ao caminho clássico. É verdade que não encontro muitas pessoas como ela na França. Vejo algumas, e talvez elas sejam mais numerosas aqui do que em outros países. Mesmo assim, são poucas. Na literatura e no cinema da Nouvelle Vague, havia diversas personagens femininas assim, e também nos filmes de Nelly Kaplan. Mas depois, foram desaparecendo. Na literatura, mulheres livres costumam ter um final trágico: veja Madame Bovary, O Lírio do Vale, Anna Karenina.
Gosto do fato que o filme não faça julgamentos morais em relação à Sidonie.
Com certeza. O filme não faz propaganda de nenhum modo de vida, ele apenas apresenta um exemplo. Pode-se aderir ao estilo dela, ou não. Este é meu dogma: eu não julgo nenhum personagem, jamais. Essa opção me dá uma grande liberdade criativa. Quando julgamos os outros, nós nos limitamos, porque quando rejeitamos algo no outro, nos proibimos de adotar o mesmo comportamento. Prefiro estar aberta a tudo.
O filme possui um ritmo leve, mas discute temas complexos como o aborto.
O mais importante é dizer as coisas de maneira simples, quase despercebida. Prefiro que o tema se insira como um detalhe, ao invés de propor uma grande discussão sobre o aborto. As pessoas já conhecem o tema. Não sei como os brasileiros e brasileiras pensariam a respeito. Mas acredito na liberdade da fala: nenhum tema é tabu. Deixo muita liberdade aos espectadores, que podem continuar as cenas em sua imaginação. O final é deixado em aberto, por exemplo. Às vezes me dizem que eu não vou longe o suficiente nas minhas cenas. Mas quero deixar uma liberdade de interpretação.
De que maneira encontrou Érika Sainte e a escolheu para o papel principal?
Esse papel despertou medo em muitas mulheres francesas. Em parte, elas tinham medo pelo fato de ser o meu primeiro filme, e não sabiam se o resultado seria vulgar ou sutil. Neste sentido, eu entendo o receio. Além disso, ele teve um orçamento restrito, e precisei produzi-lo sozinha. Foi difícil encontrar produtores que abraçassem o projeto, por causa da censura. Por isso, o projeto despertou receio nas atrizes francesas com quem conversei. Em contrapartida, tenho boas relações com a Bélgica, e conheço muitos atores extraordinários por lá, onde o star system é muito diferente da França. Decidi procurar novos talentos belgas, porque estava privilegiando atrizes pouco conhecidas. Se eu não tivesse produzido o filme sozinha, outro produtor exigiria a escolha de uma atriz famosa para conseguir o financiamento. Mas eu me dei a liberdade de buscar alguém fora do radar. Peguei meu carro, fui até Bruxelas encontrar Érika. A gente se deu a mão e concordamos em trabalhar juntas. Ela não tinha medo de nada. Expliquei que não teria muito dinheiro para pagá-la, e Érika me respondeu: “Sem problema”.
Você trabalhou com muitos ensaios?
Não fizemos ensaios. O roteiro estava pronto, bem amarrado, então mudei poucas coisas – por exemplo, encontrei um belo cenário que me deu vontade de escrever uma cena a mais. Existia bastante liberdade de trabalhar as emoções e o sentido de cada fala, mas os diálogos estavam prontos. Não fizemos improvisações durante a filmagem.
Você mencionou a censura de produtores. Ela ocorreu em nível institucional, assumido, ou foi algo velado?
Os produtores viam o potencial de uma comédia popular em modo Mamma Mia! (2008). Por isso, queriam reduzir o que consideravam “tendencioso”, e tentaram reduzir o número de amantes de Sidonie. Um produtor de televisão me disse que eu não tinha o direito de contar uma história dessas, porque “nenhuma mãe de família é assim”, e “o público não quer ver uma mãe de família dessas”. Demorei dez anos para viabilizar o projeto. Decidi assumir a produção em 2015, e penso que talvez hoje o processo fosse diferente. Um produtor reclamou, disse que eu precisaria retirar todas as cenas de sexo. Mas não tinha nenhuma cena de sexo! Em contrapartida, ninguém se incomodou com o fato de um dos pais em potencial ser um homem idoso. Eu pensava que esse elemento pudesse incomodar, mesmo sabendo que não seria um velho libidinoso e pedófilo. Os produtores queriam que eu transformasse numa grande comédia cheia de piadas. A ideia não era essa.
De fato, já existem muitas comédias populares assim.
Exato. Os produtores me diziam com frequência que Sidonie era ninfomaníaca. Eu expliquei que a ninfomania é um distúrbio psicológico, uma autodestruição pela sexualidade. Ninfomania não é sinônimo de felicidade, pelo contrário. As mulheres ninfomaníacas não são livres, e se machucam através da sexualidade. Sidonie não tem nada a ver com isso. Outro produtor me reclamou que ela era malvada demais com os homens. Não foi nada fácil.
Os papéis masculinos também são fortes, mas tristes.
São figuras simples. Gosto de fazer um cinema simples, acessível e sentimental. Acredito que exista um pouco de humor neste trajeto: os espectadores riram bastante durante a cena com o médico, por exemplo. Hoje o filme tem uma ótima resposta nas plataformas de streaming. Agora todas as pessoas que acreditavam ser impossível fazer um filme assim podem ver que estavam enganadas. Meu próximo filme se passará no meio do esporte, tendo como tema central a violência praticada às mulheres. Minha personagem foi agredida em casa durante a infância, e sofreu com a violência conjugal mais tarde. Para este tema, ninguém me importuna, porque a questão está bastante atual. Talvez quatro ou cinco anos atrás me dissessem que era impossível, mas com o movimento MeToo, as pessoas entenderam que é importante abraçar esses temas.
Com este tema, você deve mudar bastante em relação à comédia dramática.
Não sei o que é uma comédia dramática. O filme vai ter momentos alegres e outros tristes, mas a vida é assim. Não existe uma cor única. Ele é uma biografia, e será a primeira biografia sobre uma esportista na França, além de uma das primeiras no mundo dirigida por uma mulher. Vou mergulhar no universo das jogadoras de futebol.
É interessante saber destas restrições, porque os brasileiros ainda têm a impressão de que a França é um terreno acolhedor para a diversidade no cinema.
Você consegue pensar em uma personagem, uma única personagem no cinema francês recente, tão livre quanto Sidonie? As poucas que existem acabam procurando por um príncipe encantado no final, e terminam a história quando encontram o grande amor. Um produtor me disse que, no final, Sidonie precisaria se casar com o personagem de Thierry Frémont e seguir “o caminho correto”. Eu respondi que não existe caminho correto. Não estou fazendo uma fábula de Lafontaine, e não existe caminho errado. Tivemos um conflito intelectual: como alguém pode obrigar a personagem a “seguir o caminho correto”?
A conclusão da história é interessante por fugir a estas armadilhas.
Para mim, é desde a adolescência que se opta pelo caminho da liberdade, devido à educação. Não falo apenas da sexualidade, que é uma consequência da liberdade. Simone de Beauvoir já dizia: “Ser uma mulher livre é o oposto de ser uma mulher fácil”. O fato de dormir com muitos homens não é um sinônimo de liberdade – é possível ser livre e não dormir com ninguém. Algumas pessoas me disseram que Sidonie era livre porque tinha vários amantes, mas estas duas coisas não são a mesma coisa. Jovens criados dentro de um pensamento libertário se tornarão adultos livres, exceto aqueles muito maltratados pela vida. A perspectiva futura da mulher é criada durante a infância e juventude. É quando os pais dizem: “Você tem que fazer assim por ser menina”, ou “Você não pode fazer assim por ser menina”. Neste momento as subjetividades são limitadas. Quando eu era adolescente e queria sair à noite, os pais das minhas amigas não deixavam que elas saíssem, mas os meninos podiam sair. A adolescência deve ser o espaço da liberdade.
Como Sidonie é o seu Antoine Doinel, você pretende continuar a história dela?
Não. Eu a deixei partir, já disse o que tinha a dizer. Esta era apenas uma mensagem entre tantas que eu queria passar, entre vários temas me interessam. Pratiquei atletismo durante dez anos, e o esporte era fundamental para mim. Eu sabia que meu segundo filme abordaria o esporte. Estamos em fase de financiamento e escolha de elenco para este segundo projeto. Agora é bem mais tranquilo no que diz respeito à censura, mas surgem outras dificuldades por se tratar de um orçamento maior.
Então o sucesso do primeiro filme ajudou na concretização do segundo.
Com certeza, a audiência na Netflix foi fundamental para estruturar este novo projeto. Mesmo assim, algumas pessoas não gostam do filme, e aceito isso numa boa. Li críticas muito incisivas contra meu trabalho, e isso me agradou, porque significa que incomodei estas pessoas. Algumas se deram ao trabalho de me escrever e-mails dizendo que meu filme era vergonhoso. Foi interessante ver como isso mexeu com as pessoas de maneira profunda. Adoro isso.
Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)
- O Dia da Posse - 31 de outubro de 2024
- Trabalhadoras - 15 de agosto de 2024
- Filho de Boi - 1 de agosto de 2024
Deixe um comentário