Atriz consagrada, com mais de cinquenta trabalhos no currículo, entre longas, curtas e produções para a televisão, Ina Weisse se aventurou pela primeira vez por trás das câmeras na virada do século, quando dirigiu o curta-metragem Sonntags (2001). Desde então, segue firme no seu exercício enquanto intérprete, mas, sempre que possível, volta a comandar suas próprias histórias. Como faz em A Professora de Violino (2019), drama estrelado por Nina Hoss que chega agora aos cinemas brasileiros, em lançamento simultâneo com a plataforma de streaming Filmicca. Exibido nos festivais de Estocolmo, San Sebastian e Hamburgo, foi premiado como Melhor Atriz pela Associação de Críticos de Cinema da Alemanha, comprovando a excelência do desempenho da protagonista – e da realizadora. E foi com essa que o Papo de Cinema teve o prazer de conversar por ocasião da estreia por aqui, num bate-papo sobre parcerias femininas, spoilers e sua relação com o cinema brasileiro. Confira!
Olá, Ina. Além de diretora, você também é roteirista de A Professora de Violino.
Bom, acho importante dizer que sou roteirista apenas dos meus próprios filmes. É uma atividade difícil, e acho que não tenho confiança suficiente para me arriscar numa carreira como roteirista, entende? É algo que faço porque precisa ser feito, e por isso vou e faço. Em A Professora de Violino, por exemplo, trabalhei junto com a Daphne Charizani. Ela é da Grécia, então nos encontramos apenas esporadicamente. A maior parte do trabalho foi feito por cada uma no seu canto, e depois nos reuníamos para avaliar em que ponto estávamos. É um processo íntimo, bastante pessoal. Nosso trabalho nunca foi um exercício de vaidade, para ver quem aparecia mais. O que importava era o assunto abordado, como tirar o melhor daquela história e daqueles personagens. Agora, por exemplo, estou escrevendo sozinha o meu próximo filme, e percebo a diferença.
Como essa história chegou até você?
Isso nasceu da minha vontade de dirigir. Queria contar as minhas próprias histórias. Mas, para isso, primeiro precisava achá-las. E comecei a procurar por temas que me tocassem de alguma forma. Quando esse romance apareceu, ficou claro que se comunicava comigo em um nível muito íntimo. Por isso decidi escrever também. Parte da direção começa muito antes do set, tem início quando se está tomando as decisões que surgiram no roteiro, muito antes.
O que havia nela que a motivou para contá-la?
O ponto de partida, você quer dizer? Acho que foi essa mulher, lutando contra si e contra todos ao seu redor: o marido, o filho, os estudantes. Durante o desenvolvimento da história, é possível que o espectador a conheça melhor, camada por camada. No mundo da música há muita pressão, uma exigência sobre performance, e percebi que seria um bom cenário para incluir e descrever a personagem. Enfim, começa nela e nessa vontade em conhecê-la a fundo.
O título original é A Audição, mas no Brasil se chama A Professora de Violino. Talvez por isso tenha lembrado de La Pianiste, do Michael Haneke, que por aqui se chama A Professora de Piano (2001).
A Professora de Violino é um bom título. Porém, não sei se você sabe, esse filme do Haneke ao qual você se refere também é chamado de A Professora de Piano na Alemanha. E foi por causa dele que decidi mudar para A Audição. Adoro o filme do Haneke, é claro, mas queria evitar comparações. Pelo jeito não deu muito certo (risos).
Esse filme, de algum modo, foi uma influência para você? Ou haveriam outras?
Até certo ponto, sim. Porém, se está disposto a fazer um filme sobre música, há elementos em comum em todos eles. Se você está escrevendo sobre música e professores, há situações que irão se repetir, de um jeito ou de outro. Então, é mais um em uma longa linha. Dito isso, que fique claro: adoro Michael Haneke! Principalmente os primeiros trabalhos dele. Um filme como O Castelo (1997), baseado em Kafka, foi muito interessante para mim. Esse é um trabalho fundamental, mas também para perceber como o estilo de filmar dele foi mudando ao longo dos anos. É um grande diretor.
Você é também atriz, com longa carreira. A Professora de Violino é centrado na protagonista. Queria que comentasse a escolha de Nina Hoss e como foi trabalhar com ela.
Ela é brilhante. Uma grande atriz. Muito boa, de verdade. E expressiva. A maneira como se prepara para cada papel é impressionante. É corajosa. Trabalhar com ela foi estimulante. Eu a encontrei pela primeira vez em Paris, e após alguns minutos de conversa já sabia que esse filme só seria possível com ela como protagonista. No original, talvez a personagem não fosse tão forte. Muito dessa força veio da Nina, foi ela que a dotou dessa característica.
É curioso pois, ao mesmo tempo que sua figura é imponente, ela é sutil em suas emoções.
Com certeza. Ela é precisa. Espero que a gente possa fazer outros filmes juntas. Entende de imediato o que pedimos, e vai direto ao ponto. Às vezes é difícil de explicar em palavras, mas é o tipo de atriz que entende o que você quer mesmo quando não está conseguindo expressar. Sente a sua intenção. É um sonho, na realidade, pois quando a comunicação se dá de forma tão efetiva, você economiza tempo também.
No final do filme há um acidente capaz de provocar uma mudança na percepção do espectador em relação à protagonista. Como encara esse momento e quais foram as suas orientações ao elenco a respeito?
Uau, essa não é uma pergunta fácil. Pra começo de conversa, preciso dizer que encontrar os meninos – o filho e o aluno – não foi fácil. Era preciso que fossem jovens com vontade de aprender, que soubessem falar francês, que conseguissem tocar violino, e claro, fossem bons atores. Um deles encontrei alguns anos antes, em uma escola, e fui conversar com a professora dele. Com isso foi possível me aproximar e construir uma relação com ele. Ou seja, já o conhecia, havia confiança entre nós. Foi assim que chegamos nesse ponto. Mas não sei como continuar sem revelar muito sobre o desfecho (risos).
Sim, precisamos nos preocupar com os spoilers. Mas podemos revelar que há um acidente, certo? Como essa tragédia foi incorporada na história?
Bom, no começo, ficava claro que haveria uma morte. Mas depois me dei conta que talvez fosse forte demais. Quando estamos escrevendo o roteiro, sempre pensamos nas possibilidades, quais os caminhos a partir de cada ponto. É um horror! (risos) É excitante, mas também um tormento. Pois é preciso tomar uma decisão. Quando chegamos nessa cena, antes de gravarmos, Nina veio até mim e perguntou: “então, eu vejo o que aconteceu ou não?”.
Sim, pois tudo muda a partir desse ponto de vista. Se ela viu, sua reação tem um significado. Se não, a interpretação é completamente diferente.
Exatamente. Fiquei completamente na dúvida, tanto quanto ela. Foi esse questionamento que me fez pensar a respeito. Você viu o filme. O que acha? Ela viu ou não o que aconteceu?
Eu acho que ela viu.
Pois é. Eu também acho. Essa é a minha leitura. Mas o filme permite essa dupla interpretação. É algo rápido, então se entende quem não capturar esse entendimento. Mas, no final das contas, ela viu, sim. E tudo muda a partir disso. Penso, também, que não conta a ninguém o que viu. Nem mesmo ao marido. Apesar dele ter ciência de tudo. Por exemplo, sabe que ela tem um amante, mas tudo bem, não se importa, pois o amor que sente é maior do que isso. É algo grande. Até o ponto em que a família está, novamente, reunida na cozinha. Tudo está diferente. O poder, agora, está com o filho. Ele está reconectado com os pais. Aquele lugar é dele.
O que cada um dos homens – o marido, o amante, o filho, o aluno – representa para essa mulher?
Acho que o marido, na verdade, está ali para servir de contraste ao pai dela. Quando pequena, tinha muito medo dele. Aquele homem grande, carrancudo, assustador. Quando pode, foi o mais longe possível, se mudou para a França, escolheu um novo conceito de vida para si. Mas você não consegue mudar quem é por completo. No final das contas, acaba percorrendo as mesmas estradas. No começo, é simpática com o aluno, mas aos poucos a maneira como foi ensinada irá falar mais alto, e irá aplicar no garoto e mesma rigidez que tão bem conhece.
Os outros homens seriam desdobramentos dessa personalidade?
Mais ou menos. O marido, em alguns momentos, pode ser visto quase como um irmão. Mas não é por isso que ela gostaria menos dele. Todos esses homens não são semelhantes, mas de uma forma ou de outra servem para mostrar a ela um outro tipo de comportamento. O que você acha?
Bom, ela me parece uma mulher dividida, que tem que lidar com isso que está acontecendo e não sabe muito bem qual atitude tomar.
A família seria a pressão, e tanto o aluno, quanto o amante, seriam maneiras dela se livrar de tudo isso. Só que, apesar dela imaginar cada um deles como coisas separadas, todos sabem o que está acontecendo. O marido, por exemplo, está fazendo uma aposta: “ok, pode ir, pois sei que irá voltar”. É um homem seguro de si. Curiosamente, ela pensa o contrário, que falta coragem ao companheiro, quando é justamente o oposto.
O amante é um personagem interessante, pois é quase um refúgio.
Sim, é um lugar que a permite ser livre. Foi bonito desenvolver a relação dos dois. Não há cobrança entre eles. É um relacionamento liberador.
Estamos em um momento de reconhecimento ao trabalho das mulheres por trás das câmeras. Obviamente, você faz parte disso. Como tem visto essa mudança, ainda que tardia?
Estou feliz, é claro. Mas não é o suficiente. Afinal, você quer ser reconhecida por ter feito um bom trabalho, e não por ser mulher, apenas. O importante é ter equilíbrio, sem disparidade. Então, é claro que fico feliz com esses resultados, mulheres sendo premiadas em Cannes, Veneza, Berlim, até no Oscar. Mas há muito a ser percorrido ainda. Comecei a dirigir há mais de vinte anos (oh, meu deus!), e na maior parte do tempo convivi com poucas mulheres ao meu redor. É claro que houve diretoras famosas. O trabalho de Lina Wertmüller (1928-2021), por exemplo, me inspirou muito. Mas eram poucas, que você poderia contar em uma mão. E agora, as coisas, finalmente, estão mudando. É bom poder compartilhar do ponto de vista dessas artistas. Ver o mundo a partir desses olhos. Afinal, são diferentes. Isso não quer dizer que um homem não possa contar a mesma história. Apenas serão distintas. Se tiver empatia, poderá se conectar com qualquer relato.
Você conhece o Brasil? Já esteve aqui? E cinema brasileiro, lhe é familiar?
Nunca estive, infelizmente. Meu irmão esteve aí dois meses atrás, e passou um bom tempo viajando pelo país. Voltou encantado com o que viu. Preciso fazer o mesmo, o mais rápido possível. Agora, sobre o cinema brasileiro, também é falha minha. Não conheço muita coisa, preciso admitir. Imagino que você tenha ficado triste com o que acabei de dizer. Mas é a pura verdade. Me perdoe.
Você sabia que o Festival de Berlim é um dos eventos internacionais que mais atenção tem dedicado ao novo cinema brasileiro?
Sim, é verdade. Mas não consigo lembrar de nenhum título. Por favor, me desculpe. Mas vamos fazer o seguinte: me ajuda? Diga o nome de um filme brasileiro que você gosta e que talvez eu possa conhecer. O que acha?
O Brasil já ganhou duas vezes o Urso de Ouro no Festival de Berlim como melhor filme: Central do Brasil (1998) e Tropa de Elite (2007).
Central do Brasil! É claro! Óbvio que conheço esse, é maravilhoso. Não tenho dividido na minha mente como “isso é do Brasil, isso é de outro lugar”, mas desse filme lembro com certeza. Agora, Tropa de Elite não me parece familiar. Vou anotar aqui e procurar depois.
Há também títulos mais recentes, como Bacurau (2019).
Mas é claro! Bacurau eu vi na MUBI. Viu só, como não estava mentindo? Só não me lembrava dos nomes, mas conheço um pouco do cinema brasileiro, sim. E são filmes incríveis.
Como imagina que o público brasileiro irá receber A Professora de Violino?
Oh, Deus! Que pergunta é essa? (risos) Não sei, não tenho a menor ideia. Espero que gostem, que o assistam com fogo nos olhos, com curiosidade. Quando o exibimos no Festival de San Sebastian, na Espanha, foi uma festa. O público se envolveu demais com a nossa história. Espero uma reação calorosa assim.
(Entrevista feita por zoom em março de 2022)
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