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Desde que foi apresentado pela primeira vez em festivais brasileiros (Mostra de Tiradentes, Mix Brasil) e internacionais (Festival de Berlim, Indie Lisboa), A Rosa Azul de Novalis (2018) tem despertado boas discussões entre cinéfilos. O retrato de um dândi contemporâneo (Marcelo Diório) que expõe com franqueza seu corpo e seus relatos sexuais, misturados à filosofia e à indagação sobre vidas passadas, conquistou muitos admiradores enquanto chocou a tantos outros.

Os diretores Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro oferecem uma mistura entre documentário e ficção, entre o relato verídico e a fantasia, e principalmente entre realismo e estetização, misturando o kitsch e o cômico. O fio condutor da trama é a figura da rosa azul, que Novalis perseguia sem jamais alcançar, em conexão com as buscas existenciais do protagonista. O resultado é uma investigação fascinante pelo corpo e suas representações, além de uma reflexão muito pertinente sobre a masculinidade e o desejo nos tempos de hoje. O Papo de Cinema conversou com os cineastas sobre o projeto:

 

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Como descobriram o símbolo da rosa azul de Novalis?
Gustavo Vinagre: Isso veio muito do personagem. É uma referência do Marcelo, uma crença dele. Não saberia dizer se ele realmente acredita nisso. O Marcelo assina o roteiro com a gente, então criamos juntos. Nós nos conhecemos há seis anos, durante uma sessão de Nova Dubai (2014), no Festival Mix Brasil. A gente tinha um amigo em comum que nos apresentou. Desde então, começou o flerte de um possível filme em conjunto. Quando ele conheceu o Rodrigo, o ciclo se fechou. Tudo ocorreu em conjunto, através de muita conversa.
Rodrigo Carneiro: Durante este processo de pesquisa, tomamos nota das histórias dele. Foi quando ele disse que acreditava em vidas passadas. Através dele, chegamos a Novalis, com a busca pela rosa azul. A gente tentou trazer isso pelo filme na forma de uma pergunta: o que seria essa rosa azul na atual vida dele? Essa referência puxou muitas outras, como Bataille e a discussão do corpo entre o sagrado e o profano.

De que maneira dirigiram o Marcelo, entre composição, confissão e performance?
G.V.: Eu já tinha uma intuição muito forte a respeito dele, porque se trata de uma pessoa performática na vida, muito comunicativa. Foi um processo muito gostoso, que durou só três dias. Um pouco antes de filmar, a gente sentiu que ele estava se fechando, e ficando mais armado em algum sentido. Sentia a dificuldade de acessá-lo por algum meio que não fossem as memórias de outras pessoas: o pai, a mãe, a avó, além das referências a outros artistas. Eu sentia falta de ouvir histórias apenas do Marcelo. Ele não mostrava muito sua fragilidade, talvez por nervosismo com a data da filmagem se aproximando. Então pedi à Gilda Nomacce para nos ajudar com a preparação. Eu expliquei que queria resgatar o aspecto da fragilidade, porque o Marcelo vinha se mostrando sempre muito forte. Ela chegou dois dias antes, e pediu para os três escreverem uma sinopse do filme. O Marcelo escreveu um poema, e depois lemos o texto um do outro. Quando vi o que o Marcelo tinha escrito, percebi que ele tinha censurado o verso “Eu sou uma raposinha desgarrada”. Essa foi a deixa para a Gilda mostrar o quanto ele estava ocultando a fragilidade dele, representada por esse verso. O Marcelo percebeu isso rápido. Fora isso, o roteiro tinha algumas frases escritas, e outras pequenas indicações de temas em cima dos quais ele improvisava. É claro que tinha mise en scène, como na cena do velório do irmão, mas ele tinha autonomia para dizer aquilo da maneira que quisesse.
R.C.: Roteirizamos algumas sequências que a gente queria. A princípio, a ideia era fazer um documentário mais centrado nele e nos depoimentos. Depois, a gente percebeu que a cabeça dele era tão fabulosa que seria necessário colocar mais do que os depoimentos. Surgiram então esses dispositivos criados para acessar as memórias dele. Na hora da gravação, existiam apenas algumas deixas e marcas, mas ele estava livre para se mover dentro deste espaço e dessa narrativa, adotando a maneira que se sentisse mais à vontade para resgatar as histórias.

 

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Vocês se colocam em cena através da voz, mas não aparecem nas imagens. Por quê?
G.V.: Isso era pensado previamente: a gente não queria entrar naquele espaço, mas desejava estar presente pela voz. Esse tem sido um processo natural de trazer um olhar sobre o outro que não dependa da minha inclusão. Estou presente, é claro, mas tenho me sentido confortável saindo da imagem. Além disso, o filme não pedia essa presença.
R.C.: A gente não sentiu a necessidade disso. Aquele era um espaço mental do Marcelo. Pensamos o filme como se estivéssemos entrando na mente dele e percorrendo estes labirintos. Então você abre uma porta e encontra um carro que simboliza o pai. São espaços mentais, e não haveria espaço para a gente lá dentro. Mesmo assim, era preciso estar sempre presente para guiá-lo para onde a gente queria.

Como decidiram as referências exatas que usariam? O filme cita Bataille, Kafka e muitos outros.
R.C.: Isso veio no processo de construção do roteiro. Novalis era a figura central, com o romantismo de modo geral permeando toda a estética com bastante naturalidade. As escolhas foram se dando naturalmente, sem grandes debates ou discussões. Bataille foi a figura em que mais nos debruçamos, para definir a melhor maneira de inseri-lo. Todo o monólogo da última cena vem de fragmentos de Bataille, uma conversa nossa com o autor, através de uma pesquisa mais minuciosa para chegar à construção do texto.
G.V.: Partindo da referência inicial do Marcelo, comecei a estudar mais sobre Novalis, de quem não conhecia muito. Outras referências, como Hilda Hilst, já eram compartilhadas entre nós: todos os três gostavam muito dela.

Qual é o papel da figura anacrônica do dândi no século XXI?
G.V.: Este é o principal conflito do filme. Esta pessoa almeja um ideal romântico, mas vive num mundo kitsch. Essa seria a tragicidade do filme. Ele sempre romantiza as coisas, mas tem apenas a rosa de anilina do supermercado à disposição. Este, para mim, seria o maior símbolo desse embate. O mundo ideal dele não se encontra com o mundo real.
R.C.: Esses embates vêm do próprio Marcelo também: ele é uma figura contraditória, complexa. Às vezes penso nele como uma enciclopédia, alguém que mistura conhecimentos muito distintos naturalmente.

 

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O filme mostra o sexo de maneira frontal, mas não parece ter o desejo de chocar. Como escolheram a maneira de representar o corpo?
G.V.: O filme traz uma tentativa de mexer com a hierarquia do corpo. No início, existe o plano com o cu para cima e a cabeça para baixo. O filme inteiro tenta desconstruir a ideia da cabeça, identidade e rosto enquanto definidores de uma pessoa. No final, o zoom para dentro do cu simboliza uma tentativa a mais de compreender esse personagem, se deixar levar por ele. Tivemos muitas conversas sobre isso, e mesmo brincadeiras, quando o Marcelo me mandou fotos de um plug anal, por exemplo. Isso veio de maneira muito orgânica. Apesar de a representação ser realista, ela também é muito estilizada. É diferente da relação com os corpos em Nova Dubai. Desta vez, o sexo está lá, a chupada também, mas o gozo é totalmente fake, no rosto do Marcelo. A transa no sofá também é fake, enquanto ele fala com a câmera. Não existe a necessidade, nem a vontade de parecer realista. Em Nova Dubai, era preciso mostrar o cu, a penetração, a porra saindo.
R.C.: Nos três temos uma visão muito livre da sexualidade, não apenas nos nossos conceitos e ideias, mas também nas práticas sexuais, em como nos relacionamos com outras pessoas. Na verdade, o sexo é carregado de tanto estigma, enquanto a violência não. Ninguém se choca com a violência, mas ainda criticamos a imagem do sexo, que não tem nada de errado ou antinatural. Através do sexo, buscamos prazer, momentos catárticos, até de purificação. Quando você está com raiva, com algum problema, você transa e parece que tudo se esvai. Ainda somos muito limitados em nossas vidas sexuais. Mas nós pensamos a sexualidade de maneira natural. O Marcelo vai ainda mais longe, porque ele enxerga o corpo enquanto investigação psicológica. Aí vem a cena final, uma conclusão da cena inicial. Saímos desse orifício, e acabamos penetrando esse corpo. É um convite ao espectador para se abrir, penetrar-se com novas ideias.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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