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A Serpente :: Entrevista exclusiva com Lucélia Santos

Publicado por
Marcelo Müller

Lucélia Santos é uma profunda conhecedora da obra de Nelson Rodrigues. Ela própria já disse em diversas ocasiões que os textos de Nelson foram um divisor de águas não apenas na carreira, mas também em sua vida. Nos cinemas, Lucélia brilhou duas vezes (no mesmo ano) sob a égide de Nelson, com Engraçadinha (1981) e Bonitinha Mas Ordinária (1981). Agora, ela está de volta às telonas com A Serpente (2019), interpretando as irmãs gêmeas que entram em crise após uma oferecer o marido para tirar a virgindade da outra. Atualmente em Portugal, em meio às gravações da novela Vida Louca para a emissora TVI, Lucélia gentilmente nos atendeu para este breve Papo de Cinema acerca da empreitada que ainda ganhou outra camada de significado por ser rodada nas ruínas do crime ambiental de Mariana. Conversamos sobre a transposição do subúrbio carioca (do original literário) a um ambiente mais poético, a parceria com Matheus Nachtergaele e o quanto Nelson Rodrigues ainda é relevante. Confira.

 

Você é uma profunda conhecedora da obra de Nelson Rodrigues. Em princípio, o que te pareceu a proposta estética de A Serpente, que traz uma dimensão trágica mais clássica ao original?
Adoro essa visão do Jura (Capela, o diretor), bem como a fotografia do Pablo (Baião) e a direção de arte do Pedro (Von Tiesenhausen). Tudo se deve à decisão do Jura de projetar a ação dramática nos escombros de Mariana, tirando-a do centro de uma cidade grande, especificamente de um apartamento. Ele tinha Hiroshima Meu Amor (1959) como referência e acho que ele acertou em cheio nisso! Eu adoro. (Nota da redação: o filme de Alain Resnais, mencionado como referência, se passa nas ruínas da cidade japonesa atingida pela bomba atômica).

Qual foi o maior desafio para viver Guida e Ligia, visto que elas são bastante diferentes?
O desafio foi mais interior, sabe? Tínhamos a composição e a caracterização externas, que estudamos na base de pouca ou da quase nenhuma maquiagem, figurinos bem diferentes e o que prevaleceu como leitura principal foi a atitude interna das personagens, assim como a física. Um trabalho delicado. Todos os responsáveis pela criação foram incríveis.

 

E seu trabalho com o Matheus? Como foi o processo de construção dessa relação cênica?
O Matheus e eu somos unidos por uma crença superior na arte do ator, no teatro, em Antunes Filho e Zé Celso Martinez Corrêa. Somos dois apaixonados pelo que fazemos e nos acompanhamos, mesmo de longe, por toda a vida e carreira. O fato de contracenarmos foi uma grande emoção. Era como estar lidando com algo muito, muito delicado: os sonhos! Amo, respeito e admiro Matheus, demais ! Nunca é demais!

 

Para você, qual a simbologia de filmar em Mariana, naquele cenário ocasionado por um crime ambiental sem precedentes?
Nem usaria a termo “simbologia”. Fui uma das pessoas “que botou pilha” para que isso acontecesse, mesmo antes de saber que o Jura estava tendo Hiroshima Meu Amor como referência. Já no final da nossa primeira reunião, comentamos sobre o acidente de Mariana e eu mencionei estar muito inquieta com a tragédia ambiental. Queria ir lá, apoiar os atingidos, pisar naquele lugar, pois quase não conseguia acreditar no ocorrido. Jura sentia o mesmo. Então, em poucos dias ele reuniu a equipe, providenciou um vestido de noiva com uma cauda de sete metros, decidiu que eu interpretaria as duas irmãs e lá fomos nós.

A obra de Nelson está muito ligada ao Rio de Janeiro, especificamente ao subúrbio carioca. Esse deslocamento a um cenário mais simbólico, menos realista, facilita o diálogo profundo com o teatro? Que outras implicações ele causa para você?
Creio que o Nelson é universal, mesmo falando do subúrbio. Agora que sua obra está sendo lançada aqui na Europa, em inglês (quero ver como eles vão traduzir “batata”), posso afirmar essa universalidade com segurança. E quanto às transposições, elas se sustentam completamente porque a obra de Nelson tem amarras profundas e legítimas, uma vez que expressam a verdade da alma humana.

 

Como foi o trabalho com o Jura Capela? Houve muitos ensaios?
Tivemos apenas um ensaio, na realidade, antes de sairmos do Rio com Matheus. Jura é uma mente aberta e bastante sensível, nos entendemos muito bem.

Qual a importância de encenar e/ou filmar Nelson Rodrigues nos dias de hoje?
A mesma de ler Irmãos Karamazov, de (Fiódor) Dostoiévski. Nelson Rodrigues é o maior autor da língua brasileira. Um clássico.

 

(Entrevista feita por e-mail, em julho de 2019)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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