Juan Zapata é colombiano de nascença, mas brasileiro de coração. Radicado no sul do Brasil – mais especificamente em Porto Alegre – desde 2004, já atuou como diretor, roteirista e produtor. Começou a se dedicar às áreas de cinema e de televisão em 1997. Estudou primeiro na Universidade Jorge Tadeo Lozano, em Bogotá, e na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba, em Havana. Ainda no seu país de origem escreveu e dirigiu quatro curtas-metragens, estreando em longa com o documentário Fidelidad (2004). Já em solo brasileiro seguiu trabalhando em projetos publicitários e em produções terceirizadas para a televisão. Seus trabalhos seguintes no cinema foram os documentários A Dança da Vida (2008) e Ato de Vida (2009). Atualmente acompanha o lançamento de sua primeira obra de ficção, o drama Simone, que já passou por diversos festivais no Brasil e no exterior, enquanto espera uma melhor data para entrar no circuito comercial por aqui. O filme, que tem como protagonista uma lésbica que decide investir em uma relação heterossexual pela primeira vez em sua vida, passou recentemente no 21° Festival Mix Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e se prepara para seguir para a Argentina e para a Suíça. Antes de seguir em seu giro internacional, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o diretor. Confira!

 

Como você tomou conhecimento da história da atriz Simone Telecchi, na qual o filme Simone se baseia?
Conheci Simone em 2006, durante um teste de elenco para uma série que dirigia na época para RBS TV. Naquela ocasião eu procurava um olhar diferenciado para fechar o episódio, e foi ela a escolhida. No set me chamou a atenção a ambiguidade dela, por momentos um masculino muito forte, e por outros um feminino esforçado. Vivo da curiosidade, e por isso não controlei a vontade de conversar mais com ela. Essa conversa virou amizade, e assim descobri o que se passava. Justo naquele momento ela estava passando por essa “transição”, podemos dizer, dando início a um relacionamento com um homem pela primeira vez em sua vida. Achei que sua honestidade e orgulho pelo sua experiência de vida daria um filme, e me comprometi a contar sua história. Tanto a inversão de conceitos como a força dessa verdade eram tentadores demais para mim. Admiro quem se aceita como é, quem não se evade, quem não receia encarar a vida do jeito que é. Acima de tudo, admiro pessoas corajosas como ela, ainda com suas fragilidades, me instigam. Em algum momento temos que assumir algo na vida, seja sexual, profissional, emocional. O enredo de Simone está cheio de metáforas que só poucos conseguem perceber, elementos que transcendem o sexual. É aí que está o barato do filme para mim.

Juan Zapata e Simone Telecchi

Quais foram suas principais referências ao decidir transformar essa história verídica em cinema?
Acho muito legal essa questão, pois você é a quarta pessoa que fica com o desejo de saber quais foram essas referências. Sendo assim, passo a lista exata de filmes usados para criar este projeto: Segredos e Mentiras (1996), de Mike Leigh, 9 Canções (2004), de Michael Winterbottom, Whiski (2004), de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, Cidade Baixa (2005), de Sergio Machado, Madres (2006), curta metragem do espanhol Mario Iglesias (recomendo ver, é excelente!), Amores Brutos (2000), de Alejandro González Iñárritu, e Maridos e Esposas (1992), de Woody Allen, foram as mais óbvias. Confesso que Carne Trêmula (1997) também serviu de inspiração para as cenas sexuais, é um dos meus favoritos de Pedro Almodóvar. E, por fim e obviamente, cito O Lado Obscuro do Coração (1992), de Eliseo Subiela, a quem faço homenagem em Simone.

 

Após diversas incursões no cinema documental, como foi estrear na ficção e por que a escolha deste tema?
Foi algo natural. Obviamente, minha primeira intenção foi fazer um documentário com historia de Simone, ainda em 2006, mas ela é histriônica demais e, pela primeira vez na vida, me confrontei com algo que exigia uma estrutura diferente… tinha que ser ficcional. Era impossível ser contada em documentário. Para mim, o elemento de ser baseado em um fato real já era instigante e me dava um pé na terra para essa transição de um gênero a outro. Mas foi lindo, porque minha vida como realizador estava exigindo algo mais, algo diferente. Tinha feito ate então quase trinta documentários para televisão, internet e cinema, e me sentia desgastado. Queria me renovar, e desde quando esse episódio me chamou a atenção decidi que precisava experimentar. Aliás, o próprio projeto nasceu como experimental, e ainda que poucos o percebam, foi assim também que foi realizado. Algumas cenas são improvisadas, houve 100% de liberdade criativa com a equipe. Isso era algo que, pessoalmente, considero fundamental, pois todas as técnicas de direção de atores que tenho vieram dos meus documentários. Assim, me senti tranquilo e consegui fluir muito felizmente na “ficção”. Tanto que ainda que a minha essência seja e sempre será de documentário, já estou escrevendo dois novos roteiros com esta mesma visão. Foi uma plenitude o processo de criação e produção, algo que quero repetir – porém, sem ter que NUNCA mais usar meus recursos econômicos pessoais!

Juan Zapata e Simone Telecchi no set de Simone

Houve algum receio em escolher Simone Telecchi para interpretar a si mesmo em Simone?
Nunca existiu outra possibilidade de atriz, ainda que após seis anos tentando torná-lo realidade a própria Simone tenha me pedido que escolhesse uma outra intérprete. Diante dessa impossibilidade, decidi encarar o projeto com meus recursos pessoais, porque não fazia sentido contar esta história sem ela. Tanto não era justo como também perdi minha maior referência documental durante o processo. Nunca pensei numa outra atriz e não teria feito o filme sem ela.

 

Como foi feita a seleção dos demais integrantes do elenco?
O elenco foi o “destino”. Dois meses antes de iniciar as filmagens ainda faltava o personagem do Pedro. Quem iria fazer a Cris, a namorada de Simone, era uma atriz mexicana com a qual vinha trabalhando por quase dois anos. Ela foi em vários ensasios, como em Guadalajara e em Cuba, para preparar o personagem até chegar ao ponto que a queria. Numa semana qualquer chegou um DVD da Argentina, sem marcas, remetente, nada, para eu avaliar (acredito) para a rede de distribuição que desenvolvo na Zapata Filmes. Nesse longa me surpreendeu o protagonista, que me resultou familiar, tinha no melancólico olhar exatamente aquilo que buscava para Simone. Aí descobri que era o Roberto Birindellii e fui atrás de seu contato. Mandei o roteiro e, segundo ele, o que leu estava tão esquisito e com uma estrutura tão curiosa que topou na hora! Devido a um corte de um financiador de último momento, a duas semanas do início das filmagens, tive que cancelar a vinda da atriz mexicana, o que foi um choro mútuo de vários dias. No desespero para substituí-la, Roberto indicou algumas pessoas, entre elas Natalia Mikeliunas, a quem incialmente achei linda demais (com perfil mais de modelo do que de atriz) e com pouca experiência – ela só havia feito até então um videoclipe que não consegui ver até o final! Porém, numa única cena desse clipe ela me conquistou, num olhar perdido por uma janela. Mandei o roteiro imediatamente e no dia seguinte ela me retornou e, em uma frase, me demostrou que tinha ido além do ponto no qual tinha chegado com a intérprete anterior, ate porque esse personagem fala de mim também, de ser estrangeiro no Brasil. O segredo desse personagem era a sensação de solidão, e ela chegou a ele por instinto. Foi, sem dúvida, uma das surpresas mais lindas do filme, ter contado com o talento dela e com o generoso Roberto.

Juan Zapata

O lançamento de Simone tem sido diferenciado, visando uma exposição internacional. Por que essa vontade?
Sempre penso o cinema de forma internacional. Sou contra ao regionalismo da produção e tento mudar esse conceito. Sou ambicioso e sinto que o mercado internacional é a única alternativa para alguém que, como eu, investe nos seus próprios filmes. Acho que os incentivos que se dão no Brasil criaram uma comodidade na distribuição que me incomoda. Poucos filmes vão para fora e não se tem interesse nisso. Eu, no entanto, dependo disso, vivo disso e cresço a cada dia como pessoa e profissional com isso. Não imagino outro jeito, pois o sistema protecionista do Brasil nunca (por enquanto) vai permitir que um estrangeiro tenha acesso a recurso estatais. É um fato. Ainda que eu sinta que meu cinema também seja brasileiro. Tanto quanto é latino.

 

Como tem sido esse processo?
Sempre quero fazer algo diferente ou inédito na distribuição dos meus trabalhos. Experimentar me dá prazer, é algo que faz parte do que para mim significa fazer cinema. Neste caso, ter mais países de lançamento, seguir com a multiplataforma é, para mim, o futuro. Trabalhar transmedia e crossmedia com os subprodutos que começam a ser exibidos esta semana e diversificar no modelo de negócio para TV, cinema, internet, VOD, SVOD. Tudo faz parte na proposta de acreditar em novas plataformas como cineclubes, circuitos itinerantes e até a pirataria em alguns países. Alias, já comprei o meu filme numa cópia pirata na Colômbia! Farei um post sobre isso em breve!

 

A questão da sexualidade ainda é um tabu em muitos lugares. Quais cuidados você, enquanto realizador, achou necessário ter em sua abordagem?
Fiz o filme querendo gerar essa discussão. Se paramos para pensar, Simone começou a ser criado em em 2006, numa época em que falar sobre isso era mais tabu do que é agora em 2013. O impulso de fazer sempre teve esse objetivo. Se filme saísse em 2007 ou 2008 seria um marco de referência, creio que hoje não tanto. Os cuidados foram mais com a verdade do filme, com a fidelidade em recriar a mesma história. Queria que as cenas sexuais transcendessem essa questão de ser ou não entre o mesmo sexo, e acho que conseguimos isso como equipe. Foi delicado, contamos com a seriedade de profissionais experientes para que fosse tranquilo filmá-las, e nos apegamos à poesia do roteiro. Me preocupei em deixar os atores à vontade, em deixar clara a essência e, mais do que nada, em dar liberdade para que o personagem criasse na mesma imagem. No set ficavam somente o fotógrafo, o assistente e eu, criando um clima de intimidade que é uma conquista. Foi lindo e fico orgulhoso com o resultado. Sem estas cenas este filme seria banal. No início, no primeiro roteiro, a trama era sobre o descobrir sexual de Simone. Nesta versão que filmamos, o sexo é simplesmente parte da história, uma ferramenta dramática necessária. É como a personagem e a história… honesta.

Juan Zapata no set de Simone

Como você tem sentido a repercussão diante a história de Simone?
Tem sido uma surpresa até hoje. Simone foi orçado inicialmente em US$ 30 mil, e até o final seu custo total, com a distribuição inclusa, está chegando a uns US$ 250 mil. Mas eu sei, quando se faz um cinema partindo de um valor tão baixo a expectativa termina sendo que qualquer coisa que aconteça com o resultado final já é uma conquista. O filme já passou pelo festival temático LGBT mais importante do mundo do mundo, o San Francisco Film Festival, e até agora já participou de outros 10 festivais, sendo três deles de classe A. Neste mês estará em Mar del Plata, na Argentina, e em Genebra, na Suíça. Nunca imaginei que poderíamos ir tão longe. Até o ponto de sermos apontados como “favoritos” em alguns festivais, como aconteceu em Bogotá!

 

Sua preocupação é maior com o público ou com a crítica?
As críticas, em geral, estão sendo muito generosas. Até as que não são tão boas não chegam nem perto de minha própria autocrítica em relação ao filme. O saldo para mim tem sido mais do que positivo nessa parte. Minha relação com os espectadores, por outro lado, tem sido muito próxima. Tenho recebido mensagens todos os dias, alguns saem do filme e vão diretamente ao e-mail para dividir o que acharam. Isto começaremos a publicar em breve, pois nos chegam mensagens muito bonitas demostrando que pelo menos na Colômbia e no México estão percebendo o filme na sua parte mais poética.

Simone lida com temas polêmicos, porém com um olhar que pretende ser diferenciado. Crê que a mensagem tenha sido dada de acordo com o que você esperava?
Confesso que esperava mais polêmica, mas vejo que nesta época é mais fácil e menos chocante que esta temática chegue até às pessoas. Lembro de sair da estreia em Medellín, e o lugar onde o filme foi exibido possui bares próximos. Ali pude ver pessoas que saíram do cinema direto para uma cerveja, e muitos estava com os olhos ainda húmidos. Isso tem sido algo que está marcando minha vida e que me está motivando a querer mais! Mas estas interpretações se renovam a cada exibição, a cada país. Simone está feito para se reinventar nas pessoas. Para que com a experiência de vida sexual de cada um se construa o filme a critério de cada espectador. Por isso nunca vai ter unanimidade na sua percepção. A surpresa é constante!

(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em novembro de 2013)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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