Julio César Leite Machado – ou apenas Julio Machado – nasceu no interior de São Paulo, no início dos anos 1980. Ator de formação teatral, começou no cinema timidamente, aparecendo como coadjuvante em filmes como Trabalhar Cansa (2011) e Não Pare na Pista (2014), entre outros. Pouco depois, chamou a atenção de todos ao ser chamado para o seu primeiro papel como protagonista, vivendo o personagem-título de Joaquim (2017), drama histórico dirigido por Marcelo Gomes e baseado na vida de Joaquim José da Silva Xavier, o revolucionário Tiradentes – e que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro. Depois de passar pelo Festival de Berlim – um dos mais importantes do mundo – em que disputou o prêmio de Melhor Ator ao lado de nomes como Richard Gere e Bruno Ganz (o vencedor foi o austríaco Georg Friedrich, por Helle Nächte, 2017), marcou presença no épico familiar Entre Irmãs (2017), mais uma vez como uma figura real, o cangaceiro Carcará. Agora, no entanto, deixa de lado esse pé na realidade para se aventurar por uma proposta mais ousada: é um dos principais elementos de A Sombra do Pai, de Gabriela Amaral Almeida, uma história de terror e suspense premiada no Festival de Brasília e já em cartaz nos cinemas. Foi nessa ocasião em que conversamos com exclusividade com o ator, que falou um pouco mais sobre esse trabalho e outros momentos importantes da sua carreira. Confira!
O que você sentiu quando assistiu ao filme pela primeira vez?
Olha… a primeira vez foi uma porrada. Depois de dois anos que tínhamos filmado, quando finalmente assisti àquela figura triste, foi um choque. A metade do filme foi como espectador, principalmente o núcleo das meninas, com as mulheres da trama, e depois como parte de tudo aquilo, lembrando o que havia sentido durante as filmagens.
Quando o roteiro chegou nas suas mãos, o que você sentiu ao lê-lo?
Sorte, né? Sorte por ter chegado até mim um roteiro escrito por uma pessoa como a Gabriela, que se dedica a investigar o cinema de gênero, a maneira como ela se aprofunda nessas questões. Ela escreve o roteiro e sabe como fazer, o que deseja de cada ator. Tem muita clareza do processo. Portanto, num primeiro momento, foi uma sensação de “que incrível”, sabe? Fazer um filme de alguém como ela, que já vinha de uma destacada trajetória de curtas, me parecia fantástico. Depois, num segundo instante, era a sorte também de poder mergulhar nesse assunto. Principalmente do ponto de vista desse personagem, o Jorge. É isso que tá na pauta, pois diz respeito à desconstrução necessária do macho, como ele se conhece, e que precisa ser feita. Que quebra de constituição é essa, e o quão fundamental é que seja feita agora. Quais as possibilidades de encontro e de escuta, para que essas pontes não sejam desperdiçadas. O Jorge está no limite dessa questão. Afinal, é um homem que, por causa da repetição do trabalho, foi se engessando a ponto de não enxergar a própria filha, um universo feminino que não consegue acessar. Achei um prato cheio para investigar situações que falam com o meu cotidiano.
A desconstrução permeia o personagem e a trama. Um dos momentos mais estranhos é quando ele pega a filha para sair e diz: “vamos ser uma família”.
Pois então, é aquela coisa de “vamos ser feliz à força”. O que é mais fascinante e rico na proposta da Gabriela é que ela conta a história desse cara, e por mais que eu mesmo tenha raiva dele às vezes, a narrativa é sob uma perspectiva que não tenta fazer dele um vilão. Ele também é vítima de um sistema que se opõe. De entrega da sua vida, de total subjetividade, de tudo aquilo que constitui em privilégio de uma dinâmica de trabalho.
Essa proposta de trabalhar com o cinema de gênero, foi algo que lhe agradou desde o princípio?
Bom, já vivemos um filme de terror no nosso cotidiano. No mundo todo, mas especialmente no Brasil. Por tudo isso, acho pertinente essa possibilidade de abstrair o horror, o terror, dentro de um recorte imaginado, fantástico. Foi muito profícuo no sentido de clarear essas questões. É a máxima psicanalítica: “ilumina a tua sombra para poder avançar para a luz”. Na clareza, na compreensão do que está ao nosso redor. Não sou um conhecedor do cinema de gênero nos mínimos detalhes. Mas, essa aproximação, através desse trabalho, me colocou essa preocupação de ter que dominar o estilo, mas também me levou a compreender que era até bom me manter um pouco ignorante a respeito das sutilezas que o gênero prega, pois assim poderia ter uma construção do personagem não necessariamente como o esperado. Talvez, saber em excesso tornasse o processo mais racional, nos distanciando daquilo que realmente estávamos buscando.
O Jorge renega a possibilidade do fantástico. Isso se percebe no que você acabou de falar, essas sutilezas. Como foi buscar esse elemento através da atuação?
Toda a minha performance foi pautada numa tentativa de construção de um estado físico. Como ele é um cara que não fala muito, era importante para a narrativa que tivesse mergulhado em estados emocionais e físicos marcantes. Para isso, fomos criando rituais para tentar encontrar essa corporalidade, essa fisicalidade. Dentro do universo dele, que é o da construção civil, fui visitar obras, cheguei a trabalhar como pedreiro. Tudo para entender o que aquele cara estava passando.
Vocês contaram com um preparador de elenco ou foi apenas entre você e a diretora?
O Flavio Rabelo foi um auxílio luxuoso. Porque o diretor de cinema tem que cuidar da orquestra toda, a demanda é imensa. Como Gabriela faz questão de estar próxima do ator, e não meramente terceirizar, delegar essa função para alguém, começou esse trabalho e se manteve presente o tempo todo. Mas o Flavio, nos momentos em que ela precisou se ausentar, vinha com a pesquisa dele sobre performance para propor jogos e treinamentos que fomos criando para manter vivo esse estado.
Como foi o trabalho com a Nina Medeiros, a criança que faz a filha?
A Nina é um caso à parte. É o tipo de criança que você não encontra a qualquer momento, em qualquer lugar. Ela tem uma alegria imensa. É uma atriz por inteiro, estava ali atuando, sabia que aquilo era um jogo. Mas também tem uma sabedoria de pessoa, para além da cena, que potencializa essa manipulação. Nós temos uma relação muito árida no filme, enquanto personagens. Por isso eu, enquanto adulto, tinha a preocupação extra de estabelecer uma relação com ela que me chancelasse, que me desse liberdade para jogar com os códigos do personagem, sem, no entanto, me preocupar que isso fosse ser uma violência que seria absorvida por ela.
Foi uma questão muito íntima entre vocês dois, pelo jeito?
Tentei propor uma relação que não foi fácil. No começo, ela tinha muita resistência. Digo no início, porque hoje em dia temos um profundo afeto. A gente se chama de ‘pai’ e ‘filha’. Mas antes não era tão fácil. Lembro que a primeira vez que a chamei de ‘filha’ ficou um clima estranho. Hoje tenho para mim que ela tinha absoluta consciência de que aquilo era um jogo. Haviam questões familiares dela que, na nossa leitura racionalizada de adulto, serviam como explicações. “Ah, talvez ela esteja projetando uma relação pessoal e sendo resistente por causa disso”, sabe? Mas dada a profundidade de afeto que conseguimos desenvolver e como nos tratamos agora, tenho certeza de que ela era senhora desse jogo, estava consciente do que estava fazendo e queria trazer para além da cena essa aridez que o roteiro propõe.
Uma das cenas mais marcantes é a do balanço. Como foi feita?
É bizarro, né? Bastante violenta. Como se ele quisesse expulsar de si o problema. Taí, também, a habilidade da mise-en-scèneconstruída pela Gabriela. Tudo é mérito dela. É uma passagem que me lembra também o trabalho que desenvolvemos no Joaquim (2017), que também era bastante apoiado na corporalidade dos personagens.
Joaquim foi um projeto do tipo ‘antes e depois’ na tua carreira, certo?
Bom, foi a primeira vez que vivenciei um set de cinema de verdade. Fiz muito teatro na minha vida, e imerso nesses processos, sempre mantive uma curiosidade por fazer cinema. Quando me era possível, fazia uma ponta aqui, outra ali. Fiz uma participação afetiva no Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), por exemplo. Mas a primeira vez que pisei num set foi em 2005, ou seja, dez anos antes. Durante todo esse tempo, segui absolutamente comprometido com o meu trabalho no teatro. E fazendo cinema por curiosidade, atendendo a um desejo que nem sabia nominar ainda. Foi no set de Antônia: O Filme (2006) que comecei, a Tata Amaral que me deu minha primeira oportunidade. Mas nunca havia acontecido algo como Joaquim, ser o protagonista e viver por completo o processo de uma filmagem. Um mês na preparação, mais quatro semanas filmando. Estar presente do começo ao fim. Não sei se chamaria de divisor de águas, pois é mais uma estreia, o meu verdadeiro contato. Apesar de já ter flertado algumas vezes antes.
É um filme muito forte, tanto para ti, mas também para o público, pois é a primeira vez que as pessoas começam a reparar no Julio Machado.
Ah, com certeza. Pra ter uma ideia, com o A Sombra do Pai fomos para o Festival de Brasília, uma experiência incrível. Só que o primeiro festival de cinema que participei foi a Berlinale, na Alemanha, um dos maiores do mundo! E foi o Joaquim que me proporcionou isso. Foi lá a estreia, em alemão. Foi muito louco.
A Sombra do Pai, portanto, é o passo seguinte, de se assumir como uma figura de cinema?
Tenho essa inquietação de encontrar o equilíbrio em todas as linguagens. Sou aquariano, curioso. Gosto do desafio de testar os limites. Estou com saudades de fazer teatro, que é onde nasceu o meu contato com a interpretação, e do qual estou afastado há mais de dois anos. Também por causa de outros projetos interessantíssimos que foram surgindo. Não só no cinema, mas também na televisão. Mas o cinema tem um lugar todo especial pois junta a possibilidade de um aprofundamento, do estabelecimento de relações mais intensas, como é o ambiente do teatro, com a certeza de ter esse registro, esse documento, que o teatro não oferece. O cinema é muito especial. Mas gosto de circular por todos os lugares.
A Sombra do Pai tem uma mensagem forte sobre a família. Como você imagina que o público brasileiro vai reagir ao filme?
O público brasileiro, no geral, precisa entender a diferença entre família como instituição normativa, do regimento de uma sociedade, para o conceito de família no sentido de cumplicidade, encontro, troca, escuta. A gente tem um presidente da república que, entre outras coisas, diz que na família dele uma nora negra não seria possível porque os filhos dele tiveram educação. Que na família dele, ter uma filha foi um desvio, uma ‘fraquejada’, foi o termo que usou. Que se um filho fosse gay, ele curaria isso na porrada. O conceito de família precisa ser repensado. É um lugar de aceitação incondicional. E acho que o filme lança essa perspectiva. Pois, mais do que a instituição, estamos falando de pessoas que precisam aprender a se comunicar, a se apoiar mutuamente. É uma oportunidade fantástica, imaginativa, no conceito de um filme de horror, de refletir sobre o que é família. Quando é uma chancela para você ser socialmente estabelecido, é uma viagem, só uma desculpa. Você vai, com isso, fomentar o que há de trágico no desencontro daquelas almas. Família não precisa ser de sangue. É amor. A família pode ser reinventada, e deve.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em setembro de 2018)