Em janeiro de 2020, Sérgio Borges apresentou na Mostra de Tiradentes seu novo filme, A Torre. Adaptado do romance Coiote, de Roberto Freire, o filme traz a história de André (Enrique Diaz), homem de meia-idade, sofrendo a crise de um relacionamento recém-terminado. Enquanto se isola em meio à floresta, encontra comunidades libertárias e se depara com um jovem (Caio Horowicz) estranhamente parecido consigo mesmo. Seria seu duplo? Uma lembrança da juventude, um sonho?
A Torre está em cartaz nos cinemas, trazendo um cinema radical e simbólico que o diretor já havia mostrado no premiado O Céu sobre os Ombros (2011). Entre a fantasia e o estilo documental, esta torre de solidez masculina se dilui em meio às forças da natureza. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com Sérgio Borges sobre o projeto:
Como teve contato com o livro e decidiu adaptá-lo?
Coiote é um romance extenso, do escritor e terapeuta Roberto Freire. Com 15, 16 anos de idade, eu li o livro, e o personagem do Coiote marcou muito a minha adolescência, entrando na fase adulta. A relação dele com as comunidades que encontrava se tornou minha referência de liberdade, de coletividade, de amor livre. A relação que via no casamento dos meus pais era estranha. Eles eram brigados, então quando olhava para os meus pais, não tinha a impressão de que casamento era uma coisa boa. O livro falava de amor livre, de amor entre jovens. Entre 2012 e 2013, eu estava fazendo uma mudança de casa e esse livro caiu na minha mão. Eu estava pensando o que fazer depois de O Céu sobre os Ombros. Então me lembrei de que, quando eu era jovem, tinha dito que se me tornasse cineasta um dia, gostaria de fazer um filme baseado no Coiote.
Eu reli o livro, e esta trajetória representou um olhar meu para trás, para os meus desejos de juventude. À medida que trabalhava no projeto, percebi que, mais do que me identificar com o Coiote, eu passava a me identificar com o personagem mais velho, desacreditado do amor. Para mim, era bem difícil manter a ideia original do filme, que seria uma celebração libertária em busca de uma cura. Mais velho, percebi que a relação entre prazer e responsabilidade era mal resolvida na minha vida. Isso frustrava meu objetivo maior de ter um grande amor, e dar conta da família que eu estava criando. O filme, no final das contas, trata muito mais da crise deste homem mais velho.
Toda a atmosfera construída representa o universo emocional do personagem, andando pelas sombras e tentando reencontrar a luz de alguma forma. O filme deixa margem para interpretação, ele sugere mais do que afirma. Vi um ritual de passagem entre idades, com o mais velho abandonando a sua juventude inocente e sedutora. É um acerto de contas: o jovem continua ali, provocando o homem mais velho. Tem uma ideia de morte e renascimento. O filme foi ficando tão diferente da proposta original que eu acabei trocando o nome, para a referência não ficar tão direta. A Torre tem a ver com a carta do tarô, que evoca um grande acontecimento, maior do que a realidade. A pessoa que está na torre desaba e cai no chão. Esta é uma forma de renascimento, de certo modo.
Como trabalhou estes personagens simbólicos com os atores?
A ideia do Coiote parecer um duplo, entre o real e o imaginário, pairava no ar. Mas quando eu filmei, esta comunidade tinha um lastro de realidade ainda maior. O Caio Horowicz foi para o Encontro Nacional de Comunidades Alternativas do INCA, para capturar a ideia do andarilho, de alguém livre e solto no mundo. O Enrique Diaz precisava ser um personagem mais contido, que de alguma maneira pudesse estabelecer uma empatia e uma história de amor com esse jovem. O Enrique é um ator incrível. Ele teve poucos encontros com o Caio, antes de construir esse personagem amargo, cético. O filme não deixa muito claro, mas ele enfrenta uma crise da separação com a personagem da Maeve Jinkings.
O trabalho com o Enrique foi no sentido de estar com o corpo dele no meio daquela natureza toda. Apesar de o filme ser muito silencioso, com poucos diálogos, o trabalho de filmagem tinha um aspecto documental. Era o registro destes corpos em relação com o espaço, para captar a maneira como reagiam à natureza. É um filme onde os silêncios revelam a relação entre corpo e natureza. Eu venho de um registro, em O Céu sobre os Ombros, com a ficcionalização de pequenos momentos da vida para criar certo arco narrativo. É claro que a gente sempre teve um desejo de criar uma atmosfera, evocando forças da natureza. Esta é uma relação pessoal minha, e queria que estivesse retratada também.
Como delimitou o tom entre realismo e fantasia?
As minhas experiências com a ficção acabam no lastro do simbolismo. Esse filme se pretendia simbólico, com a presença do cavalo, do precipício, da morte. Era previsto que ele começasse naturalista, e numa curva ascendente, passasse a incorporar elementos extrarrealistas. O filme oscilava entre uma fotografia mais formal e outra mais naturalista, embora sempre tenha um cuidado, um rigor estético. As cenas noturnas, com a câmera vagando na noite, foram feitas a posteriori. Vendo o material filmado, e o projeto se transformando na montagem, eu e o Ivo Lopes Araújo voltamos para fazer especificamente estas cenas. Existia um trabalho de trazer este clima na correção de cor, para criar o peso da sombra, a relação com o escuro. Isso beirava o não-naturalismo. Quanto ao som, meu técnico pegava toda as ambientações possíveis para compor depois o clima, mas sempre existia a ideia de um filme de atmosfera.
Você enxerga A Torre dentro do cinema de gênero?
É engraçado, porque agora estou me envolvendo num projeto de terror relacionado ao chupa-cabras, e me aproximando mais do cinema de gênero. Eu nunca pensei em A Torre como um filme de gênero, mas sempre pensei nele como fábula. Talvez a fábula se aproxime da ideia do gênero. A proposta de pesquisa durante a elaboração do filme propunha este estilo documentário, porém incorporando elementos fantásticos, ou mais fantasiosos. A noção do fabular sempre esteve presente. Este é um longa-metragem curto, com poucos diálogos, representando poucos dias na vida daqueles personagens. Não fica claro para o espectador se os acontecimentos são da memória do espectador, ou da imaginação dele. É real, é projeção dele? Esta ambiguidade sempre esteve presente. Em algumas versões do roteiro, o cavalo aparecia morto, como num sonho. Sempre flertei com a proporção deste fantástico dentro do filme. Confesso que recuei um pouco, e pensando hoje, talvez pudesse ter explorado mais as questões de gênero. Mas fiquei sem saber se isso cabia no projeto. Hoje vejo o filme como uma fábula sobre a iniciação da meia-idade do homem masculino.
Em se tratando de uma fábula psicanalítica, como vê o papel do erotismo, e do homoerotismo, dentro do filme?
No livro, o Coiote desenvolve uma história de amor com o homem mais velho, que recalca o desejo pelo rapaz mais novo. Isso esteve no filme: queria transcrever isso para o espectador, mas quando o personagem se transforma num duplo, esta relação ainda existe, entre o flerte e a provocação. De certo modo, os dois homens são a mesma pessoa ali dentro. O homoerotismo relacionado aos personagens está ali presente, e quero que isso passe para o espectador, mas os elementos narrativos não explicitam isso, nem constroem um desfecho.
De qualquer modo, queria que o flerte entre o homem mais velho e o homem mais novo acontecesse. O filme traz a comunidade libertária de maneira sugestiva: isso é algo que o homem mais velho viveu, e não vive mais, ou algo que ainda gostaria de viver? Este homem solitário tem uma visita meio desconfortável da personagem feminina. Ela é forte, bem resolvida, e não busca nada com ele, nem tenta reconquistá-lo. O lugar da homossexualidade, com os corpos livres em comunidade, paira na narrativa. O filme pode ser lido pelos seus símbolos, por um prisma psicanalítico. A comunidade entra como pulsão de vida, como algo libertador.
Quais são os caminhos para viabilizar e levar ao público uma obra tão ousada narrativamente?
Eu tive uma experiência anterior muito diferente com O Céu sobre os Ombros. Ele ganhou o Festival de Brasília, e depois foi para o Festival de Roterdã. O filme teve uma carreira nacional e internacional muito boa. Eu fiz A Torre cercado de expectativas, mas ele não teve muito espaço no circuito de festivais. O filme passou em Tiradentes e no Rio, ou seja, em festivais importantes, mas não teve uma carreira internacional legal. Diante dos cenários e das pautas pelas quais os festivais mostravam interesse, ele passou à margem. Mas eu, enquanto espectador, acho este tipo de cinema interessante, um cinema de atmosfera, com referências do leste europeu, por exemplo.
A Torre teve dificuldade de encontrar seu espaço no circuito de exibição. Ele pode ter suas falhas e faltas, mas acredito que seja um filme profundo, denso. Não sei até que ponto os tempos de hoje parecem pedir um posicionamento muito explícito e claro em relação às pautas do mundo, enquanto eu fui em busca de uma representação interna do personagem, ao invés dos problemas sociais. Talvez este seja um sintoma: é possível que não se esteja olhando tanto para o lado de dentro atualmente. Escutei críticas sugerindo que já passou a época deste cinema de fluxo. De fato, temos feito menos filmes com aspectos atemporais. Não considero isso positivo ou negativo, mas também não tenho medo de me posicionar desta forma no universo do cinema. Acredito no cinema sugestivo, fabular, interno.
Este filme participou da seção work in progress do Festival de Brasília. Foi o ano em que os filmes da Daniela Thomas e do Marcelo Pedroso despertaram polêmicas. A Torre estava escondidinho ali, e me diziam que seria um filme “white people problems”. Tive receios em relação a isso. Mas ele transmite coisas que me parecem importantes, e que acredito dignas de diálogo, mesmo que não encontre um público amplo. Talvez o filme seja visto desta maneira agora, mas seja interpretado de maneira diferente no futuro.
A pandemia pode mudar nossa percepção do filme? Afinal, A Torre lida com o contato humano, o isolamento, a abertura ao outro e ao desconhecido.
Sim. O próprio pessoal da Vitrine Filmes, nossa distribuidora, tinha me apontado que durante a pandemia, o projeto passaria a ter outra conotação. Eu concordo. O mundo está sempre em movimento, e os significados que a gente atribui às coisas vão mudando. Não tenho muito controle sobre isso. Por um lado, este é um personagem isolado, por outro lado, a torre reflete sobre o ideal de masculino que precisa se sustentar e se manter em pé, enquanto corresponde a um isolamento, uma dificuldade de expressar fragilidades e sentimentos. As características da masculinidade patriarcal tornam os homens mais despreparados afetiva e emocionalmente para lidar com as relações e experiências do mundo. Esta torre se relaciona à crise do masculino. Isso está relacionado a uma questão de idade, ligada ao envelhecimento e às transformações do desejo ao longo da vida.
A minha experiência pessoal com a pandemia, que obrigou a gente a ficar em casa, mais sozinho, me forçou ao confronto com meu mundo interno. Se eu não podia fazer grandes movimentos externos, tive um momento propício para olhar para mim mesmo e me reavaliar. A Torre acaba refletindo o desejo de olhar para mim mesmo, para as feridas que foram geradas em mim e que eu gerei nos outros. Neste caminho patriarcal, o homem sempre quer conquistar, ter reconhecimento, se projetar para fora. Na minha idade, a partir de certas frustrações afetivas e profissionais, o homem tem a possibilidade de ser menos heroico e de olhar para as feridas internas. O filme tem a ver com este universo, e com a saudade de ter contato, de ver o outro.
No processo de montagem, boa parte das imagens relacionadas à comunidade não foi utilizada. Eu e o Luiz Pretti, que estava presente ali, decidimos usar o making of e as partes não utilizadas da comunidade para fazer outro filme. A ideia é trazer outro aspecto, mais luminoso, desta experiência de filmagem que a gente teve. Provavelmente será um longa-metragem, apenas com imagens que já existiam, além de vozes gravadas para a comunidade.
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