Alice Gomes é uma daquelas entrevistadas agradáveis com as quais o papo rende facilmente. Em parte, porque claramente é apaixonada pelo filme que concebeu com tanto carinho e, portanto, demonstra entusiasmo ao falar dos meandros, das dificuldades e das alegrias do processo. Antes dos questionamentos, fez questão de frisar: “A sua foi a primeira crítica do meu primeiro filme, sabia?”. Ao largo da conversa transcrita a seguir, ela expressou o quanto A Última Abolição (2018), então seu primeiro longa-metragem, aprimorou a sua visão crítica acerca do assunto. Profissional com ampla experiência audiovisual, Alice comemorou, ainda, a façanha de chegar ao circuito comercial em oito cidades, algo aparentemente insignificante, mas, na verdade, uma vitória diante da concorrência desleal de produções com verbas de marketing astronômicas e nomes facilmente reconhecíveis nos créditos. Confira o bate-papo descontraído sobre a construção de A Última Abolição, bem como a respeito das questões que o fundamentam.
Como você se integrou ao projeto e o que mais lhe atraiu nele?
O tema sempre me foi bastante caro. Sou absolutamente sensível à desigualdade racial e social no Brasil. Fazia pesquisa sobre o assunto para uma produção ficcional da Carla Esmeralda e da Bianca de Fellippes, da Esmeralda Producões e da Gávea Filmes. Foi a Carla quem deu essa virada de fazer o documentário e apostou em mim para dirigir. Resolvi, então, abordar coisas que não conseguiríamos colocar numa ficção. Um dos elementos bem fortes é isso do protagonismo negro, algo necessário de ser discutido no âmbito audiovisual. Então, quis fazer um longa-metragem para cinema e televisão que tocasse muita gente. O documentário nos permite falar de várias questões.
Quais os principais desafios que você enfrentou como estreante?
O primeiro foi ter cuidado, porque queria fazer algo que chegasse longe e não fosse mal interpretado. Chamei o Jeferson De para supervisionar artisticamente. Conversei com ele desde o primeiro momento. Trocamos ideias e informações, inclusive de pessoas a serem entrevistadas. Outra figura essencial foi a Luciana Barreto, apresentadora da TV Brasil, também engajada no movimento negro, há mais de dez anos. Ela foi minha colega na faculdade de jornalismo. A Lu trouxe uma vasta gama de contatos, de gente imprescindível que ela já tinha entrevistado. A escalei para conduzir, fora de quadro, as conversas, especialmente por conta do lugar de fala. Fizemos as pautas juntas, mas os entrevistados ficaram diante dela. Eu estava atrás das câmeras. Havia uma preocupação genuína com isso de preservar o lugar de fala, que é um conceito amplo. É necessário respeitar o outro e se colocar no lugar do outro.
E o processo de pesquisa, tanto o dos profissionais quanto o do material de arquivo?
Foi possível por conta de outra parceria, desta vez com a Patrícia Pamplona, que tem uma empresa especializada em pesquisa iconográfica. Como o filme pretende falar desde antes da existência da fotografia, havia dificuldades sérias. Não à toa se faz pouco documentário histórico no Brasil, porque é bem difícil fugir à dinâmica das “cabeças falantes”. Queríamos uma abordagem diferente. Chamamos o estúdio Radiográfico, empresa de concepção visual, para fazer as artes do filme, os grafismos, a fim de dar uma modernizada, inclusive em imagens que já fazem parte do nosso inconsciente. Nosso desejo era realizar algo atrativo e consistente.
Como foi o trabalho com a Natara Ney sua montadora e co-roteirista?
Acredito que em todo documentário o montador é co-roteirista. Atentar à costura das imagens é vital. Tínhamos quase 60 horas de material. Foi um processo de montagem bastante longo, de quase um ano. Trabalhamos em conjunto para reduzir essa duração paulatinamente. Até o corte de 3h, conseguimos manter todos os entrevistados. A fim de diminuir para uma hora e meia, tiramos temas e personagens inteiros, por mais que isso tenha doído, mas foi para o bem da narrativa. Nosso objetivo é conquistar o maior número de pessoas, não pela bilheteria, mas para disseminar conhecimento. Cerca de 30% dos depoentes acabaram ficando de fora da versão final, mas são devidamente mencionados no fim, porque foram imprescindíveis para o resultado.
Seu filme deflagra uma dívida histórica. O que pensa de personalidades públicas e influentes, como o presidenciável Jair Bolsonaro, que questionam essa dívida que vocês expõem?
Acho que ele (Bolsonaro) faz uma redução simplória e tendenciosa do assunto. É óbvio que existe uma divida histórica, não chegamos aqui do nada. Se há privilegiados, há excluídos e marginalizados. São necessárias, sim, politicas de valorização, medidas compensatórias e ações afirmativas. Estou aqui porque todos os meus antepassados me trouxeram aqui, e isso acontece com a população negra também. É um problema mundial, não apenas local. Mas, talvez apenas no Brasil exista alguém que negue a existência de tais dívidas históricas. Não faz sentido falar de presente sem olhar para o passado.
(Entrevista concedida por telefone, no Rio de Janeiro, em outubro de 2018)
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