A recém-encerrada edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo trouxe a primeira exibição mundial de uma aguardada produção brasileira: A Viagem de Pedro (2021), de Laís Bodanzky. O filme se concentra no período específico em que Dom Pedro (Cauã Reymond) fugiu da ira dos brasileiros e embarcou rumo a Portugal, onde planejava travar uma guerra contra o irmão pelo trono.
Desmoralizado, ele passou meses dentro da embarcação, ao lado de almirantes, ajudantes de cozinha e ex-escravos libertos. Embora haja pouquíssima documentação histórica sobre o episódio, a diretora decidiu imaginar a psicologia deste homem em crise, num projeto ambicioso que inclui Welket Bungué, Isabel Zuáa, Luise Heyer, Rita Wainer, Francis Magee, João Lagarto e Isac Graça no elenco. Bodanzky conversou com o Papo de Cinema sobre a origem e o desenvolvimento do filme histórico:
Por que decidiu se concentrar numa lacuna histórica, um período de pouquíssima documentação?
Essa lacuna também me atraiu, mas o mais interessante nesta história, para mim, é o fato de se situar entre dois mundos, num período de transição da história do Pedro. Tem uma mudança significativa, uma escolha que ele faz, saindo de um país que certamente não voltaria a ver, deixando o seu filho, e ir para uma guerra. Este seria um momento especial na vida de qualquer pessoa. Ele deixa para trás o local onde cresceu, se formou, onde fez a independência, mas carregando muita dor. As conquistas se equilibram com o baixo reconhecimento e com incertezas de quem são seus parceiros e amores. Pedro precisa buscar a si mesmo: ele não se reconhece nesse momento.
Num sonho íntimo, com certeza ele desejava ser o próprio Napoleão. Dom Pedro era muito mais um militar do que um estadista. Esse monarca era mais focado em estratégias de guerra. O Brasil se tornou esse país continental porque ele administrou essas opressões. O Brasil é o resultado de várias opressões militares, comandadas inclusive por ele. Essa escolha é uma contradição: depois de tudo o que fez, como não tinha o reconhecimento? O ego estava fragilizado, o que constitui uma situação inusitada. O futuro não seria simples, porque Pedro estava prestes a colocar a própria vida em risco na guerra. Na verdade, até existe um diário de bordo dessa viagem, trancado a sete chaves. Não consegui ter acesso a ele. Ele fica nos arquivos da Casa Imperial, em Petrópolis, e é o original, então nem poderíamos manusear.
Tentamos tanto que uma hora decidi que seria melhor nem saber o que existe ali dentro. Para quem vai fazer um filme de ficção, é melhor inventar. Mesmo que eu estivesse abordando outro período, com mais documentação, precisaria ficcionalizar, porque senão não se faz um filme. No caso desta viagem, os livros de história indicam apenas que Pedro entrou na embarcação, levou toda a sua mudança e partiu. O próximo parágrafo costuma começar com “E então ele chegou à Europa”. Essas entrelinhas trazem uma deixa interessante para criar e fazer um mergulho interno, sem tanta cobrança dos fatos históricos. Não queria fazer um livro de história filmado, não é esse o cinema que eu busco. Quis me debruçar nessa personagem.
Por se tratar de uma ficção história, o que você fazia questão de preservar exatamente como na época, e o que podia ser inventado a partir dos fatos?
A gente tentou ser o mais fiel possível. O fotógrafo, Pedro J. Márquez, brincava que a gente estava fazendo um documentário de época, porque buscava certo rigor. Precisava ser uma viagem sensorial, com o espectador fazendo a travessia junto do personagem. Se o espectador não embarcasse junto, o filme se perderia. Quando discutimos o figurino, percebemos que não se tinham tantas roupas assim na época. Uma personagem tem apenas dois vestidos o filme inteiro. Ele coloca um xale, tira o xale, e pronto. O cabelo também era o mesmo, e se desmanchava ao longo da viagem. Existia a preocupação de ter essa vivência do barco no figurino, na roupa amassada. Quando a gente ia fazer a cena no quarto deles, a produção entrava e deixava tudo arrumadinho, mas a gente ia depois para amassar a roupa de cama. Não era um hotel cinco estrelas, sempre limpinho e passado! Era outro conceito. A gente tinha rigor com essas sensações que o cinema é capaz de passar. Os objetos e a culinária eram historicamente precisos. Quanto à diversidade de línguas, isso diz respeito não apenas à embarcação, mas ao Brasil da época. Era uma miscelânea cultural. Muitas embarcações paravam no Brasil na época antes de seguirem viagem, e a mistura de línguas era algo comum. Esse Brasil que a gente conhece hoje ainda estava bem no começo. Ainda era uma colônia sobre a qual não se prestava tanta atenção. Parece que foi há muito tempo, mas dentro da história da humanidade, foi ontem.
Como definiu a estrutura do roteiro entre cenas no barco, flashbacks, delírios de Pedro, reflexões em alemão?
Uma parte dessa estrutura surgiu na montagem. O filme sempre teve a proposta de ser um mergulho interior, e a certa altura, o espectador enlouquece junto do Pedro. A segunda parte mantém a mesma montagem da versão final, mas a primeira metade exigiu mais esforço para a gente não tornar o filme didático, mas ainda garantir que tivesse todas as informações necessárias. Era preciso convidar o público a entrar nessa história aos poucos. A estrutura multicultural dentro do barco já era parte da proposta desde os ensaios, e teve muita contribuição dos atores, nas conversas e na discussão cena a cena. Fui mudando a escrita em alguns momentos, de acordo com os ensaios. Mas a estrutura estava pronta no roteiro. Mesmo assim, teve uma contribuição muito importante do atores, especialmente os atores negros, por defenderem um olhar no audiovisual contemporâneo. Era importante não reproduzir um olhar que o audiovisual sempre teve, contando a história dos escravizados como se não tivessem nome, nem história própria, tratando-os como se não pudessem sair desse lugar para outro lugar melhor. Esse olhar atento veio muito dos próprios atores.
A propósito dos atores, como determinou que Cauã Reymond seria o Pedro ideal, e como o preparou para esse estado de fragilidade?
Na verdade, o filme é um convite do Cauã para mim! Ele é produtor, inclusive. O convite partiu do Cauã e do Mário Canivella, e eu aceitei na hora. Nós dois já queríamos trabalhar juntos. Eu tinha uma admiração pelo trabalho dele, e ele, pelo meu trabalho. Ele fez essa proposta, me dando liberdade, porque sabia que eu emprestaria meu olhar pessoal àquele personagem. Ele estava disposto a isso – aliás, era isso que ele queria, e me cobrou isso! Eu tinha feito Como Nossos Pais (2017), e ele me disse que depois dessa experiência, seria estranho eu ficar passando a mão na cabeça do personagem. “Faça de alguma forma uma continuação da reflexão sobre o papel da mulher, a exemplo de Como Nossos Pais”, ele me pediu.
Na preparação, conversamos muito, e Cauã fazia parte desse grupo de estudos, contribuindo. Muitas cenas nasceram de improviso dele, e ainda bem. Ele estava tão imbuído, e tinha tanta consciência do personagem, que tinha total capacidade de improvisar dentro daquele mote. Duas cenas emblemáticas vieram dele: a abertura, quando ele conversa com o filho, foi ideia do Cauã, num improviso. A cena em que ele demite o médico também foi criação do Cauã. A leitura no final, quando Pedro tem o livro A Arte da Guerra, foi uma proposta dele também. Essas coisas foram construídas coletivamente, pois é assim que gosto de trabalhar com os atores: fazendo debates, trocando ideias. Ninguém precisa pensar igual, mas a certo ponto, eles se apropriam a tal ponto que podem viver várias situações, porque já sabem como o personagem se comporta e pensa.
A sexualidade ocupa um papel fundamental nesta história. Como optou por isso?
Esse é um fato histórico: a impotência realmente aconteceu com Dom Pedro. Ele estava numa crise de sua masculinidade, no sentido de sua potência masculina, o que gerava essa angústia. Isso fazia parte de alguma doença física que ele vivia. Nenhum livro determina isso, mas tudo o que pesquisei indica que ele tinha sífilis, algo muito comum na época. A sífilis traz impotência e leva à loucura. Pedro realmente teve delírios: ele via a Leopoldina, e foi se tornando paranoico, exatamente neste momento da vida. Eu não poderia falar da fragilidade emocional dele sem falar da fragilidade física e em outros sentidos – tudo está interligado. Eu acho interessante falar desse herói mostrando uma fragilidade, que também é consequência da ambição e do exagero de desejos: foram muitas mulheres, muitos filhos, muitas terras, muitas conquistas. A vida devolveu para ele na mesma proporção. Não foi exagero querer tocar nesse aspecto: isso ocorreu de fato.
A Viagem de Pedro levou bastante tempo em desenvolvimento. O que determinou a estreia na Mostra de São Paulo, especificamente?
Isso foi um presente para mim. A gente até recebeu o convite para participar de outro festival antes, online, mas achamos que não era o momento. Eu entendo que esse filme precisa ser apresentado pela primeira vez ao mundo numa sala de cinema. Ele pode, depois, ser assistido online, mas precisava ser apresentado pela primeira vez, ser compreendido por críticos e pelos espectadores, como uma experiência de cinema. Ele perderia muito caso iniciasse seu percurso online. Foi uma aposta ousada da Mostra esse ano, porque agora sabemos da possibilidade de fazer um festival híbrido, tanto presencial e online, mas quando o convite foi feito, ainda não era claro se daria para exibir presencialmente.