Zeca Brito é incansável. Com dois longas – uma ficção e um documentário – e alguns curtas no currículo, ele tem produzido sem parar de alguns anos para cá. Tanto que, no espaço de um mês, mais dois filmes seus estão programados para chegar às telas nacionais – sem contar outros três que estão em diferentes estágios de produção. E o primeiro deles, já em cartaz, é o documentário A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro. Exibido no Festival do Rio do ano passado e feito em parceria com o roteirista Léo Garcia – que com esse trabalho também estreia como realizador – este projeto se debruça sobre a vida e a obra do jornalista Tarso de Castro, um dos criadores do Pasquim e de inegável importância para a comunicação brasileira na metade do século XX. E foi justamente sobre esse trabalho que o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Zeca. Pra começar, qual foi o seu primeiro contato com a história do Tarso de Castro?
Na verdade, quem teve um primeiro contato com a vida dele foi o Leo Garcia, meu grande parceiro que, junto comigo, assina a direção do filme. O pai dele é de Passo Fundo, cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde o Tarso nasceu. E foi ele que presenteou o Léo com a biografia 75 Kg de Músculos e Fúria, escrita pelo Tom Cardoso. Quando terminou de ler, se deu conta de que havia ali um personagem pronto. E nós, contadores de histórias, estamos sempre à procura de novos personagens. Tanto que nossa ideia inicial era fazer um filme de ficção. Só que acontece que fui ler o livro e percebi, também, que ele havia sido um cara incrível, mas com uma vida imensa. Qualquer coisa que a gente decidisse fazer a respeito iria exigir uma longa pesquisa. Não poderia ser feito de qualquer jeito. Então, se seria preciso todo esse trabalho, talvez o melhor fosse fazer um documentário. E foi o que a gente fez.
O filme tem uma linguagem muito própria. Como foi o processo para encontrar esse tom?
Essa busca começou a partir do momento em que nos demos conta que teria que ser um documentário. Buscar uma linguagem diferenciada, portanto, foi algo natural, pois teria que ser um reflexo da vida dele. O Tarso de Castro foi um cara ativo, que passou por muitas coisas, e a partir das pesquisas que íamos fazendo, cada vez descobríamos coisas novas. Agora, uma coisa é fato: a linguagem do jornalismo brasileiro mudou após a passagem dele. Ele idealizou aquele modo anárquico do Pasquim, e aquilo foi se reproduzindo por todos os outros jornais e revistas pelos quais ele passou. Tinha essa coisa de combinar variedade com cultura erudita. Música clássica e cultura nacional, charge e texto. Ele foi pioneiro por criar esse espaço plural e democrático, sempre se reinventando.
Isso teve muito a ver com a formação dele, né?
Com certeza. Não surgiu do nada. Foi um cara que começou muito cedo, o pai dele tinha um jornal, lá em Passo Fundo, e ele aprendeu tudo do começo, desde a base. Só que, ao dominar a técnica por completo, isso lhe permitiu desconstruir. Nasceu de uma formação tradicional, não só a parte escrita, mas também como funciona um jornal por dentro. E desde cedo foi aprendendo. Era um profissional com um conhecimento muito profundo, espontâneo, das coisas. Sua forma de trabalhar era assim, sem metodologia, e não só no trabalho, mas em todas as áreas de sua vida. Quem conviveu com ele dá esse testemunho. E justamente por conhecer toda a engrenagem, compreendia muito bem a profissão. Por saber desenhar, descontrói. E foi isso que o permitiu inventar coisas novas.
Vocês passaram por cinco cidades e quase quarenta entrevistados. Como foi organizar toda essa logística?
A logística da produção, ou seja, do próprio filme como um todo, foi todo um processo de descobertas. Uma coisa vai levando a outra. O mais complicado foi para o montador, que teve que resolver isso na montagem. Por isso o esquema do telefone nos ajudou. É uma única conversa, com o vazio, com as ondas do rádio. Isso só funciona nesse filme. As primeiras entrevistas, mais tradicionais, foram com a Dona Ada, a mãe dele, que faleceu logo em seguida, e com o Luiz Carlos Maciel. Depois a coisa foi ganhando uma proporção cada vez maior, e tivemos que pensar num jeito de lidar com isso. O Tarso era um cara que estava sempre ligando para os amigos, vivia em movimento. Isso é dito no filme. Então, na nossa terceira entrevista, com o Jaguar, ficamos sabendo que o Ziraldo havia cancelado, não quis nos receber. Foi quando tivemos a ideia: “vamos pedir para o Jaguar ligar para ele?” Sacanamente, ele não só concordou como foi reproduzindo toda a conversa. Assim, o Ziraldo está no filme, mesmo não estando. E foi a partir desse clique que decidimos usar esse recurso.
Apesar de documentário ser baseado em depoimentos, ele tenta fugir do formato mais tradicional das produções do gênero. Como vocês chegaram a este modelo de filme?
Primeiro, tentando entender qual era a linguagem que o Tarso trouxe para o jornalismo. Não tínhamos medo de experimentar, que era mais ou menos a linha de atuação dele. É preciso respeitar a cartilha, para poder desconstruí-la. Vendo as entrevistas do Pasquim, chegamos à conclusão de que o diálogo era muito mais importante do que as perguntas. E não só o Tarso, mas com todos eles eram assim. Era preciso criar esse conflito, jogá-lo em cena e ir atrás dessa ideia de diálogo. Criando encontros. Foram nesses momentos em que os personagens, que tinham histórias, vivências com ele, finalmente conseguiram se abrir. Não a buscávamos a história perfeita, aquele lance de perguntas e respostas. Buscávamos algo mais natural. E isso surge quando as pessoas se encontram. As relações humanas eram muito importantes para o Tarso. Mas é claro, nem tudo funciona com se planeja. E, num segundo momento, nem tudo que havíamos programado deu certo. Por isso o filme foi construído assim, parte são esses encontros, e a outra são as conversas por telefone.
Foi mais complicado convencer todas essas pessoas a falarem sobre o Tarso de Castro ou a darem esses depoimentos falando num telefone?
As pessoas, os inimigos dele, estes não aparecem. E são pessoas reais, estão vivas até hoje. Mas nunca foi a nossa intenção fazer um filme imparcial. Não queremos mostrar os dois lados. É a história oficial já está aí para fazer isso, que praticamente apagou o Tarso de qualquer registro, tirando o protagonismo dele de muitas coisas que fez. Este, pelo contrário, era para ser um filme apaixonado, parcial mesmo, assim como ele fazia o jornalismo dele. Queríamos que ele também estivesse em cena, vivo nessa memória afetiva. Era preciso deixar os entrevistados embebidos na emoção. Nesse sentido, a questão do telefone nos ajudou muito. Pois, através dele, conseguimos realocar o olhar, não precisava ser uma simples conversa, podia ser também uma lembrança. Estávamos longe, só o fotógrafo é que ia se encontrar com o entrevistado. Assim, foi mais fácil que cada um entrasse na conversa com a gente, conversando com os dois diretores do filme. Quase todos os entrevistados acabavam procurando o imaginário, perdiam seus olhares, e com isso se tornavam mais livres. Era quase como se não estivessem sendo entrevistados. E, dessa forma, se revelou mais fácil tocar assuntos delicados. Isso também se aproxima do Tarso. Provocação, a construção da notícia. O fato de não estar junto, despudorado, gerou uma intimidade.
Teve muita gente que não quis falar com vocês?
Não, até porque nem tentamos quem a gente já imaginava que iria se recusar. Tentamos com o Ziraldo, que concordou, mas depois acabou recusando – como descrevi acima. Outro que buscamos foi o Otavinho Frias, que nos deu tantas desculpas que acabamos desistindo. O Millôr teria sido ótimo, mas faleceu antes de termos os recursos para o filme. Como eram muitos os amigos do Tarso, não estávamos a fim de dar voz aos inimigos.
A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro é codirigido pelo Léo Garcia. Como se deu a parceria entre vocês?
A gente concebeu um conceito juntos, pesquisamos juntos, filmamos juntos. Tudo em conjunto. Mas essa não é nossa primeira parceria, a gente vem trabalhando juntos há um bom tempo. Tanto o Em 97 Era Assim quanto o Legalidade são roteiros dele e direções minhas. A gente se entende, então foi natural, algo positivo para ambos. O que não quer dizer que a gente concorde com tudo. Há, é claro, um certo grau de conflito positivo, que é bom para a criação. É a minha ideia contra ou a favor da ideia dele. O fato de ter dois diretores, isso nos obriga a pensar muito antes de fazer cada coisa. Não expor o entrevistado, por exemplo. Cada decisão era muito debatida antes. Um provocou o outro, e acho que o filme ficou melhor por isso.
Em um certo momento, o Miguel Faria diz: “que jornalista hoje em dia ganharia o argumento de um filme de um cineasta como Glauber Rocha?”. O que o Tarso de Castro falaria do jornalismo atual?
Olha… não sei o que o Tarso falaria. Sei o que a geração dele fala. E o que dizem nos provoca grandes reflexões. Afinal, o jornalismo que é praticado hoje mais agride ou provoca um verdadeiro debate de ideias? Esse pensamento vem muito a partir do que esses protagonistas pensam do tempo presente. É um paradigma de futuro, o que buscavam nos anos 1960 e 1970 e o que encontraram agora. E não necessariamente encarando isso como algo ruim. O futuro que estamos construindo precisa resgatar as referências históricas, olhar para o passado para entender o que vem por aí. Não achar que um simples manual, ou release, vai servir para construir uma verdade, uma história. Acho que o que a gente tenta refletir sobre o tempo presente através da forma como essa geração enxerga isso. Afinal, quais são os caminhos possíveis que a gente encontra por aí? O Tarso nos responde nessa essência, no lugar onde nasce a notícia. Nos encontros, nas esquinas. Mostrar o que o Tarso pensava sobre o que deveria ser o jornalismo também é uma função desse filme. E essa verdade se encontra em um abismo entre o que foi sonhado e o que existe hoje.
Zeca, você está envolvido em mil projetos ao mesmo tempo. Está finalizando o Legalidade, lançando o Em 97 Era Assim, e filmando novos longas, não? O que pode nos adiantar sobre estes futuros trabalhos?
Tanto o Em 97 Era Assim quanto o Tarso de Castro são filmes que fiz no ano passado, ou antes mesmo, e que os lançamentos acabaram coincidindo. São projetos anteriores, que felizmente estão nascendo agora. Mas tem mais coisas, claro. Fiz um documentário chamado Grupo de Bagé, que é um passo seguinte ao Glauco do Brasil (2015). Ele foi feito para o Canal Curta, vai ter sessões especiais em faculdades e festivais, mas provavelmente não entrará em circuito comercial. É um documentário bastante específico, um mergulho fundo nas artes visuais. Estou fazendo ainda um documentário chamado Quadros da Rainha, também para o Canal Curta, que é sobre um episódio que aconteceu em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial, sobre artistas brasileiros que doaram suas obras para serem leiloadas e ajudar a reconstrução de Londres. Esse estou fazendo ainda, no meio da produção, mas tá ficando interessante. E tem o Legalidade, que tá na pós-finalização, estamos na torcida para que fique pronto ainda neste ano. Pois é, tem bastante coisa. Bom, né?
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / São Paulo em maio de 2018)