Uma coisa muito curiosa ao entrevistar Carol Duarte e Júlia Stockler, as protagonistas de A Vida Invisível (2019), é que frequentemente ambas se referem às suas personagens, Eurídice e Guida, como se fossem elas próprias, na primeira pessoa do singular. Isso, de certa forma, reflete o mergulho vertiginoso que as duas fizeram nessas figuras representantes de tantas outras, cujos apagamentos e invisibilizações cotidianas são, infelizmente, reflexos de uma conjuntura social condicionada pelo patriarcado. Conversamos com as atrizes durante o Cine Ceará 2019, evento que contou com a première brasileira do longa antes premiado com a láurea principal da Mostra Um Certo Olhar, a paralela mais importante do Festival de Cannes. Carol e Júlia, depois disso, atenderam a uma agenda repleta de encontros com a imprensa e sessões de pré-estreia, inclusive pelo fato de A Vida Invisível ter sido escolhido para representar o Brasil no Oscar 2020. Confira este nosso Papo de Cinema exclusivo com Carol Duarte e Júlia Stockler, no qual elas falam de estruturas machistas e da imprescindibilidade da presença feminina no set.
No filme tanto a Guida quanto a Eurídice se relacionam com idealizações uma da outra. Guida acha que a caçula virou musicista. Eurídice acha que primogênita está bem na Europa. Como foi a construção dessas ausências singulares para vocês?
Carol Duarte: Durante a promoção do filme, temos falado muito sobre o processo. Ele nos trouxe uma conexão profunda, útil especialmente para lidarmos com a presença da ausência. Na última vez que a Eurídice viu a Guida ela deveria ter uns 20 anos. O sonho da Guida era ir embora e viver uma grande paixão. E a Eurídice projeta justamente isto, que ela deve estar feliz ao realizar seu sonho. É dura essa idealização, mas, de certa forma, também é bonita.
Júlia Stockler: O que nunca acontece é a desistência. Elas nunca abrem mão uma da outra. Por isso também as cartas enviadas. Guida fica feliz quando volta para casa e o pai fala que sua irmã está em Viena. Mesmo vivendo num limbo, ela tem esperança a partir justamente dessa idealização. Mesmo não tendo a irmã por perto, se sente aconchegada. Acredito que as duas tenham sensações um pouco diferentes com relação à ausência.
Essas personagens acabam ocupando espaços aos quais foram empurradas. Como vocês veem a maneira do filme delinear essas violências que se abatem sobre o universo feminino?
Carol: São duas personagens violentadas de modos diferentes. Se elas estivessem juntas, talvez houvesse força para resistir às brutalidades. O que as sustenta é o amor nutrido mutuamente. Às vezes isso de imaginar a felicidade alheia faz muito bem à Eurídice. A Guida tem uma sede de descoberta e liberdade, características que acabavam dando coragem para Eurídice. Quando a Guida vai embora, a coisa fica mais dura e assustadora.
Júlia: E tem outra coisa. Acredito que a violência que se abate sobre Eurídice é privada, sussurrada, algo experimentado por tantas mulheres na realidade. A violência que a Guida sofre é pública, do mundo, infelizmente também recorrente. Ela vai sendo agredida em todas as esferas. A Guida é capaz de qualquer coisa para proteger seus afetos. Tenho certeza ela não deixaria a irmã entrar naquele casamento.
Carol: A separação acaba quebrando as pernas de ambas. A força de duas mulheres juntas, que se amam, é tão intensa que poderia mudar seus futuros. A chave do patriarcado e do machismo está naquela cena da Guida sendo expulsa de casa. Como o pai seria visto pela sociedade se deixasse a filha retornar? Tanto que ele limpa o peixe meio que engolindo isso. A opressão é muito no corpo da mulher, majoritariamente no corpo da mulher, mas também priva o homem dos espaços para sentimentos. Esse pai não podia chorar por ter expulsado a filha. Não dá. Ele tem de ser duro.
Vocês acreditam que o fato do filme refutar as dicotomias, os antagonismos fáceis, acentua o poder de comunicação com o público?
Carol: Com certeza. Provavelmente há homens que não achem violenta a cena da primeira vez da Eurídice. E, para mim, isso é absolutamente revelador. O ensinado aos homens e o que eles decidem reproduzir. Porque, sim, você pode escolher não reproduzir determinadas coisas.
Júlia: Essa era uma preocupação do Karim, a de não criar espaços de antagonismo, mal e bem. Isso não existe. Existem seres humanos vivendo dentro de uma construção social, num tempo e espaço específicos. Como diz a Hannah Arendt, estamos na travessia da História. Mas, claro, para mim essa opressão absoluta representa o mal.
Carol: A sociedade se organiza de tal modo que as mulheres são invisibilizadas. Isso não é à toa.
Em várias ocasiões vocês falaram o quão importante foi a presença maciça de mulheres na equipe. Como isso afetou o processo de composição das personagens?
Carol: É bem mais confortável ter mulheres no set. Até porque temos muitas cenas em que ficamos bastante expostas. É diferente a minha comunicação com uma mulher filmando. Esse cuidado do Karim, o de ter uma equipe feminina, é político e tal decisão se reflete no filme. A fotógrafa, a Hélène Louvart, é de um cuidado absoluto. Ela demonstra muito respeito pelo trabalho. Não podíamos falar com ninguém da equipe e, além de tudo, ela não domina o português. Mas nos comunicarmos pelo olhar. E isso cria uma cumplicidade tão profunda. Mesmo que no set eu estivesse completamente exposta, de perna aberta, pelada, nenhum homem ali presente se sentiria autorizado a fazer piadinhas. E essas brincadeirinhas acontecem muito em set, não é segredo. É corriqueiro homens comentarem a respeito do peito e da bunda das atrizes. O set do Karim não tinha qualquer tipo de abertura para isso.
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