Consulte dez cinéfilos conhecedores do cinema brasileiro contemporâneo e dificilmente menos de oito deles colocarão o cearense Karim Aïnouz entre os nossos realizadores mais importantes. Radicado em Berlim há alguns anos, ele encontrou em 2019 no Festival de Cannes o seu reconhecimento internacional mais relevante. A Vida Invisível (2019) foi o grande vencedor da Um Certo Olhar, a principal mostra paralela do evento francês. Tendo como base o livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, Karim costura a existência de duas irmãs separadas pela lógica machista de uma sociedade inclinada a apagamentos femininos. Ele frequentemente diz que o filme é fruto da sua observação do mundo das mulheres, uma homenagem à sua mãe, Iracema, e também um tributo às novelas que tiveram peso considerável em sua alfabetização audiovisual. Conversamos com Karim durante o Cine Ceará 2019. Ele é o tipo do entrevistado cortês e verdadeiramente atento às questões, o que torna o bate-papo ainda mais rico e saboroso. Confira a nossa entrevista exclusiva com Karim Aïnouz, o diretor de A Vida Invisível.
Karim, a opção pelo melodrama foi para estabelecer um diálogo mais direto com o público?
Totalmente. Faço cinema desde 1989. Passei pela Retomada, a partir da qual a indústria cinematográfica brasileira foi reconstruída do zero. Mas me dava muita raiva quando, diante de um projeto novo, o produtor perguntava se era filme aberto ou fechado, se de autor ou comercial. Comecei a ficar bravo com isso. Quando o produtor pensa dessa maneira, imagina que filme de autor jamais vai dar dinheiro. Isso também me dava medo, porque tinha certeza que em algum momento nós seríamos cobrados com relação ao público. Antes de começar a rodar o longa, me lembrava muito de Christopher Nolan, Darren Aronofsky, Jane Campion, Pedro Almodóvar e Kathryn Bigelow. Todos eles fazem filmes com estilos próprios. E por que esses produtos de caligrafia particular não podem fazer sucesso? Meu desejo era fazer um cinema de autor, com uma marca pessoal, mas que dialogasse diretamente com o público.
E, em se tratando do Brasil, país de tradição noveleira, nada melhor que o melodrama para isso…
O melodrama sempre me encantou. Sei que muita gente o encara como um subgênero cafona. Mas esses filmes me comovem. Não posso fazer feijoada se gosto mesmo é de moqueca (risos). Para mim havia duas coisas estratégicas nessa opção. Primeiro, o fato do melodrama ser um dos gêneros mais produtivos para comunicar-se em tempo de crise. E vivemos mundialmente uma crise de várias ordens. O melodrama pode ser resumido num personagem se afogando e alguém o colocando para baixo. É feito de gente asfixiada pelo mundo. Segundo, se trata de um dos gêneros mais populares do Brasil. Nossas novelas são isso. Óbvio que existem melodramas bons e ruins. Atualmente há certa resistência ao melodrama, inclusive, e principalmente, porque os últimos anos na teledramaturgia foram relativamente precários. Comecei a entender a necessidade de fazer um melodrama sedutor e pertinente.
O filme refuta as dicotomias. Fala essencialmente de mulheres, mas os homens também são afetados pelo machismo e o patriarcado. Para ti era imprescindível partir disso?
Era fundamental. Em determinado momento do projeto, apresentamos ele num edital e fomos acusados de ser androfóbicos. É uma coisa do tipo marcha do orgulho hétero, né? (risos). Pensei: porque não? Não existem os filmes misóginos? Vamos fazer um filme androfóbico! Mas, voltei atrás por achar que, além de ingênuo, seria um gesto raivoso, quase juvenil. Até porque incorreria numa caricatura e o feitiço votaria contra o feiticeiro. A intenção do filme é denunciar a toxicidade do patriarcado. Recentemente, cerca de 52 milhões de pessoas votaram num projeto político complicado. Me interessa entender isso. É importante não desprezar as razões que levaram esse contingente a optar por isso. Queria fazer um filme que também pudesse conversar com tais pessoas. E o cinema tem isso, é malandro. O Jordan Peele, ao promover o Corra! (2018), falou que o cinema era a forma mais fácil de convencer alguém sobre alguma ideia. Não adianta eu ir para rua agora e dizer que o Brasil precisa ser mais tolerante. Meu jeito de conversar sobre isso é por meio do cinema. O filme, de fato, carrega esse desejo de apostar na produtividade política por meio de um diálogo não menos resistente e crítico. Ao invés de falar diretamente que na década de 50 as mulheres eram estupradas pelos próprios maridos, crio uma situação para que os espectadores entendam isso.
A entrada da Fernanda Montenegro em cena tem uma potência particular, me remeteu de pronto ao Tudo Que o Céu Permite, filme com o qual o teu tem similaridades, sobretudo nisso de projetar num semblante toda uma história pregressa. Como foi trabalhar com Fernanda nesse sentido?
Então, essa pergunta é tão legal. Quando a Fernanda chegou para filmar, tinha o roteiro dobrado, como quem domina aquilo. Pensei que não ia dar certo. Eu queria mudar as falas, virar as cenas de cabeça para baixo, botar vírgula onde era ponto…e ela veio com tudo dominado. Fernanda fez uma cena, aí eu disse para ela tirar três linhas, mudar a ordem e sentar em outro lugar. Ela sabiamente entrou no jogo. E foi maravilhoso. Temos muito mais material dela. Mas, durante a montagem, entendemos que Fernanda ali se trata muito mais de uma presença do que um conjunto de falas. Nesse processo de montagem tive uma crise. Era importante que essa atriz de presença luminosa aparecesse como uma personagem apagada pelos anos de invisibilização. Nesse sentido foi imprescindível ter visto Assunto de Família (2018), com o qual entendi isso de projetar a vida num rosto. E o olho do bom ator é molhado. Fernanda tem um olho super úmido. Entendi que o importante estava naquele rosto, sem contraplano.
É tão bonito e forte aquilo…
Pois é, mas me dei conta disso apenas na montagem. A montadora até chegou a me dizer que aquele plano no rosto dela era muito longo. E aí eu respondi: “como a gente pode chamar de longo um plano tão forte desses?”. Foi muito bacana a troca que a gente teve a fim de chegar a esse resultado. Era importante criar um jogo entre silêncio e apagamento. A presença da Fernanda já é hiper iluminada, então nosso trabalho era realmente tirar essa luz.
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