Nascido no dia 09 de novembro de 1955 em São Paulo, capital, o mundo só foi ouvir de fato o nome de Fernando Meirelles quarenta e sete anos depois, em 2002, quando o realizador assinou um filme que chegou discretamente mas foi logo mostrando que tinha muito a dizer: Cidade de Deus, produção nacional baseada no livro de Paulo Lins que, naquele ano, foi convidada para ser exibida numa mostra paralela do Festival de Cannes – não foi selecionada para a disputa principal – e que, após sua primeira exibição, gerou um impacto tão grande que resultou em mais de 3 milhões de expectadores no Brasil e em inéditas quatro indicações ao Oscar – nunca um filme brasileiro havia alcançado um feito como esse antes – inclusive para Melhor Diretor. Depois disso, Meirelles partiu para uma bem sucedida carreira internacional, trabalhando com autores como John Le Carré e José Saramago e com astros como Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Mark Ruffalo, Julianne Moore e Gael Garcia Bernal. Mas esse ar cosmopolita nunca fora tão evidente como em seu mais recente trabalho, 360, exibido na noite de abertura do 40° Festival de Cinema de Gramado. Foi sobre esse trabalho, sobre esse prestigioso convite e sobre seus próximos passos que o Papo de Cinema conversou com o cineasta, neste bate papo inédito e exclusivo, em Gramado, logo após a exitosa exibição no Palácio dos Festivais. Confira!
Como foi formado o elenco multinacional de 360?
A possibilidade de ter nesse filme um grupo de atores tão interessante foi um dos principais aspectos que me fizeram topar assumir essa direção. Principalmente porque me dei conta que iria trabalhar com gente muito boa, sempre precisar ocupá-los por semanas – cada um ficou no set por dias, uma semana, no máximo. Fora os atores mais conhecidos, como Anthony Hopkins, Jude Law, Rachel Weisz e os brasileiros Maria Flor e Juliano Cazarré, que são famosos para nós, os demais que aparecem também possuem um passado. Na verdade, quase todos são grandes estrelas nos seus próprios países. Por exemplo, aquele que chantageia o Jude Law no começo é o Moritz Bleibtreu, que conhecia do Corra Lola Corra (1998)! O mesmo acontece com o Johannes Krisch, que é austríaco e muito interessante, é sempre o protagonista nos filmes que faz, inclusive num indicado ao Oscar (N.E.: Revanche, que concorreu como Melhor Filme Estrangeiro em 2009), e pra nós topou fazer um cafetão, uma participação extremamente pequena, mas muito importante.
Como foi o processo de seleção destes intérpretes?
Para escolher cada um destes atores existiu uma produção independente em cada país, que fazia uma pré-seleção e me apresentava sugestões. Ninguém decidiu por mim, não houve nenhuma imposição por parte de produtores. A palavra final em cada caso foi minha. O ator russo foi a situação mais curiosa, porque não conhecia nenhum intérprete de lá. A minha produtora me ofereceu uma lista de atores russos que moram em Londres, mas eu queria o real deal, algo mais verdadeiro, que viesse da Rússia mesmo. A solução foi procurar na internet, focar no rosto de artistas, nos pôsteres dos filmes de lá, e quando aparecia alguém interessante, que nos despertava a atenção, a gente ia atrás. E foi assim que encontramos o Vladimir Vdovichenkov. Vimos algumas coisas dele, o achei extraordinário. Quando fizemos o convite, o agente nos disse que devíamos estar loucos por oferecer tão pouco. O cara é tipo o Wagner Moura da Rússia! O nosso cachê era de mais ou menos um décimo do que ele estava acostumado a ganhar ao fazer os filmes russos. Por que ele sairia de casa para ganhar menos? E não era nenhuma tentativa de ofensa da nossa parte, até porque tínhamos oferecido o mesmo cachê do Jude Law, para se ter ideia. E foi só com muita conversa que conseguimos convencê-lo, e o acho ótimo, muito carismático, valeu todo o esforço.
Não foi preciso fazer nenhum tipo de teste?
Com as meninas eslovacas o processo foi um pouco diferente: para a mais nova esse foi o primeiro filme dela e a outra é uma apresentadora de televisão muito conhecida por lá, mas que também nunca havia feito um longa. Foram os dois únicos casos de todo o filme em que fizemos um teste de leitura. Fiquei dois dias em Praga testando várias candidatas, e acho essas duas incríveis, creio que fizemos uma boa escolha com elas. De todo o elenco, a primeira pessoa que escolhi foi o francês Jamel Debbouze, que quando li o roteiro pela primeira vez já fiquei com ele em mente. E o mais engraçado é que ele foi também o mais difícil. Ele estava em turnê pela França, e para participar teve que cancelar duas ou três apresentações, enquanto que nós tivemos que adiar a data das filmagens em uns 10 dias para podermos encaixá-lo. Foram apenas três dias com ele no set, e foi espetacular. O olho dele brilha, é emocionante. Sou muito fã dele.
Você recebeu o roteiro pronto ou conseguiu estabelecer algum tipo de colaboração com o Peter Morgan, que está creditado como roteirista?
O Peter Morgan, apesar de ser inglês, mora em Viena. Essa história começou quando um amigo dele, que é um executivo da televisão austríaca, pediu que escrevesse alguma coisa em homenagem aos 80 anos da morte do Arthur Schnitzler. Foi quando começou uma pesquisa, e de tudo que leu o que mais gostou foi a peça La Ronde. Peter decidiu não fazer uma adaptação fiel do texto, e sim recriá-lo inspirado em fatos da sua própria vida. Ele mora na Áustria, trabalha na Inglaterra e nos Estados Unidos, ou seja, toda semana tá viajando. É algo que conhece muito bem, com vários aeroportos, quartos de hotel genéricos. Tendo isso em mente, criou uma outra história, praticamente original. Não mexi em absolutamente nada no roteiro – acho que esse filme é mais do Peter do que meu, aliás. Ele fez o roteiro sem receber, e porque queria contar essa história, era algo muito pessoal. Durante as filmagens tivemos em várias ocasiões a presença dele no set. No elenco também deu bastante palpites, ajudou um monte durante a montagem – mesmo que tenha sido por Skype! Esse é um filme nosso. A única coisa que é minha são as transições entre as histórias, porque na redação original era muito episódico. Eu que pensei nessas passagens, para deixar o resultado um pouco mais orgânico.
A inclusão de dois personagens brasileiros foi uma contribuição sua?
Não, os dois já estavam no roteiro original. E para estes dois papéis também não tivemos segundos nomes. As minhas escolhas iniciais foram mesmo a Maria Flor e o Juliano Cazarré. Com os dois já havia trabalhado na minissérie Som e Fúria, na Rede Globo, e desejava muito reencontrá-los.
360 possui uma cor muito diferenciada. Como foi o estudo para a fotografia do filme?
Pra quem não sabe, o Adriano Goldman, que foi o nosso fotógrafo, fotografou também Xingu (2012), O ano em que meus pais saíram de férias (2006), e tem feito nos últimos anos uma impressionante carreira no exterior. Pra se ter noção, o Adriano é hoje o brasileiro mais internacional no cinema. Ele ganhou o prêmio de Melhor Fotografia em Sundance por Sin nombre (2009), uma produção americana e mexicana, fez A Condenação (2010), com a Hilary Swank, fez Jane Eyre (2011), com o Michael Fassbender, tá no novo do Robert Redford (N.E.: The Company You Keep, 2012), que vai ser lançado ainda nesse ano, acabou de fazer um outro com a Rebecca Hall e o Eric Bana, e tá indo agora para os Estados Unidos fazer um com… aquela atrizona americana… (após pensar alguns instantes) a Meryl Streep (N.E.: August: Osage County, previsto para 2013)! Em 360 a ideia desde o começo era fazer algo que pudesse favorecer os atores, sem muito contraste ou tons escuros. Sabia que teria bons intérpretes, então queria vê-los da melhor forma possível.
Com 360 você deixou de lado as grandes histórias e se focou mais nos relacionamentos entre os personagens. Como foi essa experiência?
A mais prazerosa que já tive. Foi como fazer nove filminhos diferentes. Com o Ben Foster e com a Maria Flor tinha tensão e suspense, com outros tinha comédia e ação, noutro núcleo era um drama familiar… assim foi possível brincar com os gêneros. Tinha essa vontade de falar sobre as relações. E me sinto muito feliz com o filme, gosto do resultado. Foi uma experiência nova e muito boa. Não gostaria de me repetir, no entanto, com outro filme coral, que é como se chama quando combinamos várias tramas com muitos personagens – isso tem um lado frustrante, pois cada história teria assunto para render um longa inteiro por si só. Mas não havia tempo para isso, somente 8 ou 9 minutos para cada trecho. Foi preciso saber abandonar cada um deles, e isso é um pouco angustiante. Esse é, pra mim, o maior desafio desse tipo de filme, o que me causou mais sofrimento.
Quanto foi o orçamento do 360 e quais foram as maiores dificuldades da produção?
Esse filme custou US$ 14 milhões, que é muito pequeno para o padrão internacional e para os astros que temos no elenco. Antes mesmo da estreia ele já estava vendido para 48 países, estreando primeiro na França e nos Estados Unidos. A produção, na verdade, foi bastante simples. Trata-se de um filme independente, e em cada país havia um produtor local que tomava conta do processo por lá. A questão dos contratos é que foi um pouco mais complicada – o filme já estava montado e todos os contratos ainda não haviam sido assinados. Eram muitas leis, diversas cláusulas, cada país com um formato diferente. Foi o que mais deu dor de cabeça.
É possível criar uma identidade brasileira dentro de um filme tão globalizado quanto 360? Você acha que é possível, para quem o assistir, dizer “esse é do Fernando Meirelles”? O que tem de teu nesse trabalho?
É difícil responder. O fato de eu ser 100% brasileiro e totalmente enraizado no meu país deve colaborar, alguma coisa deve acabar transparecendo. O meu espírito, e não sei dizer se isso é algo pessoal ou de todo brasileiro, é de menos planejar e mais improvisar. Acho muito importante sempre buscar oportunidades enquanto se está filmando. Cada vez que aparece algo interessante tento aproveitar, incorporar à história que estou contando. A cena do Juliano Cazarré com a Rachel Weisz, por exemplo, no roteiro eram apenas 4 linhas. Ela cresceu durante a filmagem, com as sugestões dos atores. Acho muito importante ter esse jogo de cintura, e penso que isso é muito pelo fato de ser brasileiro.
Como foi dirigir Anthony Hopkins?
No dia em que nos conhecemos, cheguei para ele e comecei a explicar o personagem. Quando comecei a falar: “olha só, é um cara de classe média…”, ele virou pra mim e disse: “não, não… não quero fazer esse teu personagem. Vou fazer eu mesmo, ok?”. Como vou dizer “não” para o Anthony Hopkins? Na cena do depoimento, ele me disse: “vou fazer de conta que estou em um dos meus encontros do AA”, e tudo o que respondi foi “vai fundo”! Foram mais de sete minutos diretos, tivemos que trocar o rolo, e ele falando. O resultado ficou muito melhor do que eu havia imaginado.
Quais foram as suas principais influências em 360?
Sou muito fã do Robert Altman, certamente foi uma das minhas maiores referências. Ele praticamente só fez filmes-corais, e eram bem mais longos do que o 360. Era um mestre deste estilo. Sempre tive a vontade de fazer um filme desse tipo, mas posso dizer agora que foi uma experiência bastante difícil.
Como você tem planejado sua carreira?
Tenho feito filmes internacionais por uma questão de praticidade. Pra filmar no Brasil é preciso um tempo de captação, depois há o risco sempre muito grande da obra não conseguir ser vendida nem mesmo no Brasil, como foi o caso do Xingu, que até melhorou depois, mas levou muito tempo para encontrar seu público. Xingu teve uma abertura muito ruim, mas ficou muito tempo em cartaz, e agora está chegando aos 400 mil espectadores. Não é um número ruim em termos nacionais. É mais fraco do que pensávamos, mas não chega a ser um desastre. Mas sigo viajando, meu próximo filme será novamente no exterior, mas depois voltarei para o Brasil. Não será o Grande Sertão: Veredas, com o qual por muito tempo sonhei, e porque acho que seria muito caro e com um investimento emocional enorme. Além de que acho que o público brasileiro não estaria interessado em ver jagunços na tela, ao menos não agora. Mas voltarei a filmar no Brasil, com certeza.
Qual será esse seu próximo projeto no exterior?
Meu próximo filme se chamará Nêmesis. É uma biografia do Onassis, na verdade uma história de ódio entre ele e o Bobby Kennedy. Esse será o conflito principal, terá também a Jackie Kennedy, a Maria Callas. Será rodado em Budapeste, na Croácia e na Inglaterra e as filmagens começarão em novembro. O elenco será anunciado nos próximos meses. Trata-se de uma produção da Pathè, da França, e terá um custo de US$ 30 milhões. Estou muito feliz com esse projeto também porque é o primeiro em que desenvolvi o roteiro por completo desde Cidade de Deus (2002). Quando me convidaram, gostei da história, mas não do roteiro que tinham. Respondi que até faria, mas somente se pudesse começar do zero. E foi o que fiz, ao lado do Braulio Mantovani. Desde junho do ano passado estamos escrevendo esse texto, que ficou pronto agora, um ano depois. Ficou sensacional, gostei muito do resultado. Mais do que filmar no Brasil, estava sentindo falta de me envolver em um projeto desde o início, o que estou conseguindo fazer agora.
Como conciliar, num filme como 360, tantos interesses e diversos personagens com um ponto de vista único do diretor?
No meu ponto de vista, o tema em comum desse filme, que se repete em todas as histórias e que dá unidade ao filme é o conflito de cada personagem. Foi o que gostei mais do roteiro, é um filme sem antagonista. O filme está dentro de cada personagem. Todos passam por um momento em que precisam decidir entre o desejo e o racional. Essa ideia de que somos nós mesmos o nosso inimigo foi o que achei mais interessante.
(Entrevista feita ao vivo com o diretor em Gramado no dia 11 de agosto de 2012)
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